Por Jânio de Freitas
na Folha
A decisão, adotada na Venezuela, de adiar
indefinidamente a posse do hospitalizado Hugo Chávez tem um precedente: é
milimetricamente igual à decisão que adiou indefinidamente a posse do
hospitalizado Tancredo Neves. O que faz com que a decisão no caso de Chávez
receba exaltada condenação moral no Brasil e no caso de Tancredo Neves fosse
louvada, com alívio e emoção, pode ser muito interessante. Mas não é para um
artiguinho. E não é tão difícil de intuir, ao menos na superfície.
Convém lembrar que a crítica à solução brasileira só
veio, e muito forte, no segundo passo daquele veloz processo. Foi quando a
decisão à brasileira avançou muito mais do que a Venezuela: morto Tancredo, o
mandato que não recebeu e a Presidência foram transferidos ao vice, sob muita
contestação jurídica e ética.
As circunstâncias venezuelana e brasileira são
diferentes? Sim, claro. As circunstâncias são sempre diferentes. Mas sem essa
de que a oposição Venezuela está lutando pela democracia, e o chavismo é um
sistema contrário à liberdade, e coisa e tal. Seja o que for o chavismo e o que
pretenda a "revolução bolivariana", o que a oposição quer é restaurar
o sistema de poder anterior: um dos mais corruptos e socialmente opressores da
América Latina, de menor e mais imoral "liberdade de imprensa" e de
pensamento.
Ao longo do século passado, a Venezuela dos hoje
saudosistas deixou exemplos de barbaridade ditatorial escandalosos mesmo para o
padrão latino-americano, caso do ditador-bandido Perez Jimenez, entre outros; e
uns dois governos decentes, digo dois só para não deixar o romancista e
presidente Romulo Bittencourt sem companhia em meio a cem anos.
Mas, a não ser muito eventuais obviedades "de
esquerda", nunca li ou ouvi críticas no Brasil aos donos daquela Venezuela
e seu sistema de domínio e exploração.
O que se passa na Venezuela não é uma divergência
entre as condições jurídicas e temporais de uma posse, incerta além do mais, na
Presidência. Posse de um eleito, também é bom lembrar, em eleições de lisura
aprovada por comissões internacionais de fiscalização, entre as quais a
respeitadíssima Fundação Carter, com a presença destemida do democrata Jimmy
Carter.
A conduta do Itamaraty diante do problema venezuelano,
na qual expressa a posição oficial Brasil, mais uma vez se orienta pelo
princípio de que se trata de assunto interno do país vizinho, sem justificativa
para qualquer interferência externa a ele.
Marco Aurélio Garcia foi mandado, como assessor
presidencial de assuntos internacionais, recolher em dois dias as informações,
necessárias ao governo brasileiro, sobre o estado de Chávez e sobre a situação
política venezuelana. Não houve indicação alguma de que seu comentário
representasse uma posição assumida pelo governo brasileiro.
Para Marco Aurélio Garcia, conforme exposto na Folha
pela repórter Fernanda Odilla, "como o presidente foi reeleito, 'não há um
processo de descontinuidade' se ele não tomar posse formalmente" hoje. Há,
sim. Não há descontinuidade pessoal. Mas há descontinuidade institucional.
Uma posse presidencial não importa pelo empossado, que
pode ser ótimo ou lamentável. A importância é institucional: o início de um
mandato na Presidência. E segundo mandato é outro mandato. Como constatado no
editorial da Folha "Impasse na Venezuela", de ontem, "o texto
constitucional [venezuelano] não responde de maneira inequívoca às dúvidas suscitadas"
sobre o impedimento atual da posse em novo mandato.
Mas, em se tratando de Chávez, é válido dizer que
"adiar indefinidamente" é inconstitucional, é arbitrariedade, é
opressão. "Brasileiro não tem memória." Ou, se lhe convém, adia
indefinidamente.
Fonte – Blog do
saraiva
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