O compositor e zoólogo Paulo Vanzolini, de 89
anos, morreu às 23h35 de domingo 28, segundo o Hospital Israelita Albert
Einsten. Confira reportagem sobre ele publicada em janeiro de 2012
Noite dessas, Paulo Vanzolini sonhou com uma
poesia de Olavo Bilac que decorou quando ainda era rapazote. Os versos, que são
muitos, vieram por inteiro. Aos 88 anos, o autor de composições que
atravessaram gerações sem perder a força, como Ronda e Homem de Moral, conserva
a prodigiosa memória e se mantém imperturbável diante da fama.
Considerado por muitos o embaixador do samba de
São Paulo, ele agradece o epíteto. “Não é verdade, mas eu gosto”, diz, sorriso
nos lábios. Acomodado numa poltrona de couro na modesta casa do Cambuci,
“bairro cheio de bares ótimos”, o homem culto que cresceu rodeado de livros e
se tornou zoólogo de reputação internacional põe em perspectiva a criação de
uma vida, 70 composições e 155 trabalhos científicos. “Que glória é essa, meu
Deus”, questiona, num lapso, o declarado ateu, bisneto de anarquista. “É uma
glória muito humilde. Não tenho motivos para ser vaidoso.”
Nesta sexta 27, semana em que São Paulo completa
458 anos, Vanzolini concederá ao público o privilégio de tê-lo na Choperia do
Sesc Pompeia. Instalado numa mesa, cervejinha à mão, o artista acompanhará
alguns de seus grandes sucessos, interpretados por Ana Bernardo e Carlinhos
Vergueiro. Entre uma canção e outra, o show será pontuado pelas reminiscências
do compositor que, junto com Adoniran Barbosa, de quem foi “amigo de muitas
cachacinhas”, traduziu a cidade de forma definitiva.
“Adoniran era ótima pessoa, nos dávamos muito bem. O cara
mais desligado que já conheci. Vinha de família italiana do Vêneto. De menino o
chamavam de Joanim.” Os longos papos entre Vanzolini e João Rubinato
(Adoniran), que em sua simplicidade dizia não entender bem o que o cientista
fazia (“ele mexe com zoológico, sei lá”), jamais renderam samba. “Sempre me
pedem para contar como era nossa conversa. Era muito cotidiana. Não tinha nada
demais. Era nossa conversa.”
A famosa Tiro ao Álvaro, relembra, surgiu como um presente do
jornalista e escritor Osvaldo Molles ao amigo Adoniran. Foi Molles também o
criador do personagem Charutinho, de tiradas engraçadas embaladas por sotaque
italianado, que interpretou com grande sucesso na Rádio Record. “Adoniran
acabou assumindo na vida real o personagem da ficção. No fundo, ele era mesmo
só o Joanim.” Quando a saudade aperta, Vanzolini dirige-se ao Mercado
Municipal, o Mercadão da capital paulista. “Colocaram uma estátua do Adoniran
numa mesa. De vez em quando vou lá tomar uma cerveja com ele.”
A prosa animada de repente silencia. O olhar do
compositor vagueia pela sala, ambiente que Ana Bernardo, sua atual mulher,
define como “totalmente masculino”. Justifica-se a quase queixa: sobre um
aparador, uma grande cobra de madeira exibe a boca aberta (souvenir comprado na
Espanha). A seu lado, outra, bem mais modesta nas medidas, porém, verdadeira,
exibe-se sobre um tronco. Para alívio dos visitantes, o exemplar não se move,
foi plastificado graças a uma técnica especial. A terceira fica na mesinha de
centro. Ao lado da porta de entrada, o cabideiro dá pistas sobre a atividade
profissional do dono da casa. Ali estão os chapéus que Vanzolini usava para
adentrar o mato em busca de bichos.
Foi com a zoologia que o boêmio ganhou a vida.
Ele fez-se médico pela Universidade de São Paulo somente para facilitar o
doutorado em zoologia, em Harvard, nos EUA. Especialidade: répteis. “Nunca
examinei um doente na vida.” Por motivos óbvios, tem grande apreço por lagartos
e lagartixas. Até hoje mantém a postos seu kit de pegar bicho. No ano passado,
uma editora reuniu toda a sua produção científica. Também em 2011, a Fundação
Conrado Wessel concedeu seu prêmio máximo a Vanzolini. “Vou receber em junho,
na Sala São Paulo. É bom pra burro, são 300 mil reais”, admira-se. “Só que vou
ter de pagar Imposto de Renda.”
Em um ano repleto de homenagens, Vanzolini
receberá a Medalha Armando de Salles Oliveira. Um gesto de reconhecimento ao
homem de números científicos robustos: 47 anos de trabalho no Museu de
Zoologia, 31 deles como diretor, 40 mil animais capturados e a construção do
mais completo acervo sobre répteis da América do Sul. A paixão pelos tais
bichos começou quando ele ainda era imberbe. Aos 14 anos já estagiava no
Instituto Biológico, onde foi iniciado na branquinha. “Todo fim de expediente
rolava uma cachacinha, eu ganhava meia.”
No rastro dos répteis, muitas histórias.
“Durante um trabalho na Argentina, fui comprar um disco da Mercedes Sosa e saí
de braço dado com um soldado”, diverte-se. “O agente da polícia queria saber
por que eu estava comprando aquele disco. Disse: ‘Ela é uma boa cantora’. O
sujeito ficou olhando na minha cara. Me ameaçou, mas não podia fazer nada.”
Em tempos
de ditadura, Vanzolini foi surpreendido por um convite impossível de ser
recusado. O general Golbery do Couto e Silva, o “feiticeiro” do regime militar,
o convocava a Brasília. Sem mais explicações. Enviou passagem aérea e limusine
com motorista. “Ele mandou me chamar para passar um sabão. Queria me dizer que
eu era contra o governo. E eu era. Me disse que isso poderia dar mau
resultado.” Com calma inabalável, o cientista retrucou: “Isso vai depender de
quem aguentar mais tempo, nós ou vocês”. Conversa encerrada, voltou para São
Paulo.
Foi durante o tempo em que serviu na cavalaria
que Vanzolini compôs um de seus maiores sucessos, Ronda, clássico que
adquiriu a impressão digital de Márcia, sua mais reconhecida intérprete. “Eu
sou Ronda”, já assumiu a cantora ao autor. A música é líder de pedidos
nos karaokês até hoje. “As japonesas são as que mais pedem. No bar em que a Ana
canta, vem escrito no guardanapo: Honda”, conta o compositor, rindo. A verdade,
confessa, é que sua relação com a canção inspirada nas mulheres que observava
no entra e sai dos bares à procura dos parceiros se desgastou. “Sabe o que as
minhas filhas dizem? Fez, agora aguenta!” Vanzolini argumenta que a composição,
de melodia pungente, é uma piada. “Começa dando a impressão de que a mulher
procura o sujeito para se reconciliar, mas é para desperdiçar um pente de
revólver.”
Vanzolini começou a compor quando frequentava a Faculdade de Direito do
Largo de São Francisco, em São Paulo. Diz não ter ideia de qual foi a primeira
composição. “Aliás, lembro, mas joguei fora, não prestava.” Outra meia dúzia
teve a mesma infausta sorte. A criação favorita? “Não me ocorre nenhuma.” Dali
a pouco cita aquela que considera uma de suas melhores, Longe de Casa eu Choro.
“Fiz em Cambridge, pensando em São Paulo. Era uma poesia minha. O Paulinho
Nogueira pegou o livro e disse: ‘Você não é poeta, é sambista. Aqui está cheio
de letras de samba esperando música’. Paulinho era meu amigo de infância. Fez a
melodia com Eduardo Gudin.” Outra que também teve o auxílio luxuoso de Paulinho
Nogueira é Valsa das Três da Manhã. “Paulinho era um sujeito de qualidade
humana excepcional.” A que mais rendeu? “Só uma deu dinheiro, Volta por Cima.
Comprei livros para o Museu de Zoologia.”
Paradoxalmente, e para assombro de quem não o
conhece, Vanzolini nada sabe de música. “Tenho péssimo ouvido. Não sei ler
música, não sei o que é acorde”, jura. “Meu professor foi o rádio.” O método
para preservar as composições consistia em decorá-las. “Se esquecesse perdia
tudo. Dá uma mão de obra danada, por isso larguei”, diz. “Fica uma coisa
obsessiva. Até que a música saia você não pensa em outra coisa.” O método
Vanzolini de compor é outro mistério. “Inspiração a gente procura. Na cabeça.
Geralmente começa com uma frase. Aí vem tudo junto, letra e melodia.”
Para quem supõe haver sempre algo autobiográfico
em cada letra, o mestre desmente. “Nunca sofri com dor de cotovelo, por
exemplo, é só um tema.” Na belíssima Quando Eu For Eu Vou sem Pena,
interpretada por Chico Buarque em Acerto de Contas, coleção com quatro CDs que
reúne a obra do autor (“essa caixa completou a minha vida”), o tom é triste.
Uma tocante despedida. Mas não se trata exatamente disso. A inspiração atende
pelos nomes de Miriam, Marina, Carol e Cris. “Eu estava numa fazenda, durante
excursão do museu. Comecei a pensar em como seria quando partisse”, conta.
“Eram as alunas que estavam ali, ele fez para elas”, entrega Ana Bernardo,
diante do olhar risonho do poeta fingidor.
Boêmio de carteirinha, mulherengo apenas “na medida da necessidade”,
Vanzolini adorava percorrer as ruas de São Paulo até altas horas, sozinho.
Nesse périplo pela então metrópole da garoa, fez várias descobertas. “Uma vez
abri uma porta e descobri os Macambiras. De outra, Virgínia Rosa.” Ana
Bernardo, companheira dos últimos 15 anos, também foi um encontro patrocinado
pela música. A filha do fundador dos Demônios da Garoa encantou o compositor
com sua voz firme e melodiosa. “Ela entende a música que canta. É minha melhor
intérprete.”
Autodefinido sambista tradicional, Vanzolini
mantém o entusiasmo pela música. Ouve com admiração Noel Rosa, Dorival Caymmi,
Nelson Cavaquinho, Sílvio Caldas, Cartola e Paulinho da Viola, entre outros
grandes. E considera-se realizado. “Estou recebendo mais do que esperava. É
muita recompensa no fim da vida”, comenta, com a sabedoria dos modestos. Na
segunda-feira que antecede o carnaval, a Banda Redonda, fundada por Plínio
Marcos, vai homenageá-lo. O enfarte que lhe surpreendeu em 2004, roubando-lhe
70% da capacidade cardíaca, provou ser incapaz de deter o poeta. “Estarei lá,
lógico”, garante, com brilho no olhar.
Fonte
– Carta Capital
Nenhum comentário:
Postar um comentário