O cantor dedicou sua
coluna em o Globo deste domingo para comentar a declaração do presidente da
Comissão de Direitos Humanos e Minorias da Câmara de que ele teria feito pacto
com o Diabo para ter sucesso com a música 'Sozinho'; ao dizer que Feliciano usa
de "mentira" e de "injustiça", Caetano sugere que é ele
quem serve de fato a Satanás; "Eu creio na justiça e na verdade. Esses
valores atribuídos a Deus têm minha adesão irrestrita. Não sei que Deus
sustenta a injustiça e a mentira. Ou será que é aí que o diabo
está?"
O cantor e compositor Caetano Veloso se defendeu
em artigo no jornal O Globo das afirmações do presidente da Comissão de
Direitos Humanos e Minorias da Câmara, deputado Marco Feliciano (PSC-SP), de
que ele teria feito pacto com o Diabo para ter sucesso no disco que lançou em
1998 cuja música de trabalho foi 'Sozinho'.
De forma bastante sutil e "calma",
como ele próprio diz no artigo, Caetano sugere no final de sua coluna que, ao
contrário, quem anda em proximidade com o Diabo é o deputado cristão.
Ao dizer em diversos momentos no texto que
Feliciano usa de "mentira" e de "injustiça", o cantor
admite que não é adepto de nenhuma religião, mas afirma que acredita em justiça
e verdade como valores de Deus. É aí que ele sugere que Feliciano serve, de
fato, a Satanás.
"Eu creio na justiça e na verdade. Esses
valores atribuídos a Deus têm minha adesão irrestrita. Não sei que Deus
sustenta a injustiça e a mentira. Ou será que é aí que o diabo está?".
Na semana passada fez sucesso no Youtube um
vídeo onde Feliciano aparece em um culto religioso dizendo que o cantor baiano
da MPB "tomou bênção" a Mãe Menininha do Gantois antes de gravar
'Sozinho' e que, no momento da bênção, a ialorixá estava "possuída".
Caetano rebate. "Mãe Menininha, figura
importante da história cultural brasileira, já tinha morrido fazia cerca de dez
anos quando gravei a canção". Abaixo a íntegra do artigo de Caetano Veloso
em O Globo.
Ainda Feliciano?
Nem estou acreditando que volto ao assunto do
pastor/deputado/presidente da CDHM. Mas, como muitos devem ter visto, ele
mentiu reiterada e estridentemente sobre mim. Há um vídeo no YouTube em que
Feliciano, esbravejando de modo descontrolado, diz-se com Deus contra o diabo
e, para provar isso, mente e mente mais. As pessoas religiosas deveriam
observar o quanto ele está dominado pela soberba. Faz pouco, ele se sentiu no
direito de julgar os vivos e os mortos, explicando por meio de uma teologia
grotesca a morte dos garotos dos Mamonas e sagrando-se justiçador de John
Lennon. Agora, aferra-se à mentira. Meu colega Wanderlino Nogueira notava, com
ironia histórica sobre as espertezas da igreja católica, que a mentira não está
entre os sete pecados capitais. Mas sabemos que "levantar falso testemunho"
é condenado pelo Deus de Moisés. Por que mentir tão descaradamente sobre fatos
conhecidos? Será que minha calma observação, aqui neste espaço, de que sua
persona pública é inadequada ao cargo para o qual foi escolhido (matizada pela
esperança no papel das igrejas evangélicas) o ameaça tão fortemente? Eu diria a
pastores, padres, rabinos ou imãs — sem falar em pais de santo e médiuns
espíritas, que são diretamente agredidos por ele — que atentassem para o
comportamento de Feliciano: como pode falar em nome de Deus quem mente com tão
evidente consciência de que está mentindo?
Sim, porque não há, dentre aqueles que prestam
atenção no meu trabalho, quem não saiba que, ao cantar a genial canção de
Peninha "Sozinho" num show, eu indefectivelmente dizia não apenas que
me apaixonara por ela através das gravações de Sandra de Sá e de Tim Maia: eu
afirmava que cantá-la ao violão era só um modo de chamar a atenção para aquelas
gravações. Como pode Feliciano dizer que "a imprensa foi rastrear" e
descobriu que a música já tinha sido gravada por Sandra e Tim? Essas duas
gravações eram sucessos radiofônicos. E como pode ele, sem piedade daqueles que
com tanta confiança o ouvem em seu templo, afirmar que eu disse em entrevista
coisa que nunca disse e nunca diria, ou seja, que o êxito inesperado de minha
versão de "Sozinho" se deveu a eu ter mostrado a faixa a Mãe
Menininha e esta ter-lhe posto uma bênção que, para Feliciano, seria trabalho
do diabo? Mãe Menininha, figura importante da história cultural brasileira, já tinha
morrido fazia cerca de dez anos quando gravei a canção.
É muita loucura demais. E muita desonestidade.
Aprendi com meu pai os gestos da honestidade — e tomei o ensinamento de modo
radical. Me enoja ver a improbidade. Feliciano sabe que eu nunca dei tal
entrevista. Mas não se peja de impressionar seus ouvintes gritando que eu o
fiz. Ele, no entanto, não sabe que eu jamais sequer mostrei qualquer canção
minha à famosa ialorixá. Nem a Nossa Senhora da Purificação eu peço sucesso na
carreira. Nunca pedi. Nem a Deus, nem aos deuses, e muito menos ao diabo.
Decepciono muitos amigos por não ser religioso. Mas respeito cada vez mais as
religiões. Vejo mesmo no cristianismo algo fundamental do mundo moderno, algo
inescapável, que é pano de fundo de nossas vidas. Mas não sou ligado a nenhuma
instituição religiosa. Eu me dirigiria aqui àqueles que o são.
Os homens crentes devem tomar atitude mais séria
em relação a episódios como esse. O que menos desejo é ver o Brasil dividido
por uma polaridade idiota, em que, de um lado, se unem os que querem avanços
nos costumes, e de outro, os que necessitam fundamentos de fé, ambos gritando
mais do que o conveniente, e alguns, como Feliciano, saindo dos limites do
respeito humano. Eu preferiria dialogar com crentes honestos (ou ao menos lúcidos).
Não aqueles que já se põem a uma distância segura da onda neopentecostal. Eu
gostaria de dialogar com um Silas Malafaia, de quem tanto discordo, mas que
respeita regras da retórica e da lógica. Marina Silva seria ideal, mas
poupemo-la. Não é preocupante, eu perguntaria a alguém assim, que um dos seus
minta de modo tão escancarado? É fácil provar que nunca fiz aquelas declarações
e é fácil provar que Sandra e Tim tiveram êxito com a obra-prima de Peninha. E
que eu louvei esse êxito ao cantar a canção. Foram dezenas de milhares de
brasileiros que ouviram. Se Feliciano precisa, para afirmar sua postura
religiosa, criar uma caricatura caluniosa dos baianos e da Bahia, algo é muito
frágil em sua fé. A maré montante do evangelismo não dá direito à soberba
irrefreada. O boneco tem pés de barro. E cairá. Eu creio na justiça e na
verdade. Esses valores atribuídos a Deus têm minha adesão irrestrita. Não sei
que Deus sustenta a injustiça e a mentira. Ou será que é aí que o diabo está?
Fonte
– Brasil247
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