Em relação à morte de Pablo Neruda, as perguntas
talvez não tenham respostas. Ele estava acamado, quando o golpe aconteceu. E se
supunha que o ódio dos criminosos que depuseram o governo chileno, respeitasse
um dos poucos prêmios Nobel da América Latina até ali. Seu provável assassínio,
portanto, não é uma questão tão simples.
Por Enio Squeff*
Parte da imprensa chilena, segundo a revista “Fórum”,
está divulgando uma história que até bem pouco pareceria inverossímil: Pablo
Neruda, prêmio Nobel de Literatura de 1971, teria sido assassinado. Em pleno
golpe de estado levado a cabo pelo general Augusto Pinochet, Neruda, internado
num hospital em Santiago do Chile, sofria de um suposto câncer na próstata, e
talvez não tivesse muito tempo de vida. Foi quando alguém entrou em seu quarto,
aplicou-lhe uma injeção na barriga e se retirou. Poucas horas depois, a se
queixar de muitas dores, o poeta faleceu.
Aparentemente, e pelas conclusões dos legistas, a
“causa mortis” teria sido um ataque cardíaco fulminante. O ex-motorista de
Pablo Neruda, porém, preso em seguida à morte do escritor, reforça a versão do
assassinato. A hipótese é que às dez mil mortes atribuídas a Pinochet e a Henry
Kissinger (foi o ex-secretário norte-americano quem recomendou que as “coisas”
- leia-se mortos “necessárias” - tanto no Chile, na Argentina, quanto no Brasil
fossem “rápidas”), teria de ser acrescentada agora o assassínio do único Premio
Nobel do Chile. Qualquer semelhança entre Pinochet e um dos maiores assassinos
de todos os tempos, César Bórgia, filho do Papa Alexandre VI, pode ser um
exagero.
Mas poucos ressaltam o criminoso em Pinochet; já César Bórgia é uma
unanimidade histórica desde o século XVI.
No caso de Neruda, seu possível assassínio por
enquanto é apenas uma forte hipótese. Sabe-se que Pinochet roubou o quanto pôde
enquanto esteve no comando absoluto do Chile. No começo, isso também era uma
hipótese – até que foram localizados alguns milhões de dólares em sua conta
pessoal. Feitos os cálculos aritméticos, somados os seus salários com os de
presidente e de general, não dava para compatibilizar uma coisa e outra. Ou
seja, além de assassino, ladrão.
César Bórgia foi bem mais objetivo: roubava
principalmente dos padres e cardeais que o afrontavam, ou não. Bastava que
mostrassem ter algum dinheiro, ou razoável fortuna pessoal, lá ia o filho do
Papa com a guarda vaticana ou simples sicários. No dia seguinte, os corpos dos
monges ou dos cardeais eram encontrados envenenados ou com algumas punhaladas
no corpo. Como os prelados não tinham descendentes diretos por serem
“oficialmente” celibatários, a riqueza passava para a Igreja. E dali para os
Bórgias. O sistema chegou a ser adotado por alguns membros da repressão
brasileira. Um deles foi explicitamente condenado num tribunal comum por roubo,
embora seus maiores crimes fossem o que a justiça brasileira hoje em dia
desconsidera, como assassínios e torturas.
Talvez não queira dizer muito que Pinochet tenha
também um poeta famoso em seu saldo com Washington, que, aliás, comprovadamente
patrocinou golpe de estado no Chile. Na política internacional, assassinos e
vítimas, em geral, se esfumam na consideração de que as ordens de estado são
sempre supervenientes. E, de fato, não deixam de sê-lo. Francisco Franco
(1892-1975), ditador espanhol até a década de 70 do século XX, não deve ter
considerado muito grave que um pelotão de falangistas que ele comandava, tenha
incluído o poeta Federico Garcia Lorca entre os fuzilados que foram arrancados
de uma prisão durante a revolução espanhola. Afinal, qual a diferença entre um
poeta e pessoas comuns, igualmente inocentes – mas democraticamente trucidadas?
Parece uma pergunta pertinente. No fundo, as
injustiças das mortes de civis não são mais graves, por incluírem poetas e
artistas. Stálin e Hitler, cada um a seu turno, mataram vários, justamente por
serem uma coisa e outra ou ambas. Morrer por ideais, inclusive, parece ser mais
coerente - ou mais explicável - do que estar casualmente na mira da eventual
bomba ou do tiro errático de um combatente – louco ou não. Seria o que
aconteceu com o poeta chileno?
Pablo Neruda foi um dos comunistas mais notórios da
América Latina do seu tempo. Nunca escondeu que era amigo de Salvador Allende,
presidente derrubado por Pinochet e cujo suicídio, por sua vez, parece estar
devidamente comprovado. Foi a exceção que talvez tivesse comprovado a regra.
Imagina-se que Allende, como fez seu amigo poeta, poderia ter se entregado vivo
às tropas golpistas chilenas: quem sabe fosse até poupado (uma cogitação quase
fantasiosa, dada a sanha assassina dos golpistas e da CIA da época). Mas a
Pablo Neruda sequer foi posta essa possibilidade: estava acamado, quando o
golpe aconteceu. E se supunha que o ódio dos criminosos que depuseram o governo
chileno, respeitasse um dos poucos prêmios Nobel da América Latina até ali
[Nota do autor: Agradeço ao leitor Sérgio Rodrigues pela retificação; de fato,
Gabriela Mistral recebeu o Nobel de Literatura em 1945]. Seu provável
assassínio, portanto, não é uma questão tão simples.
É que poetas, jornalistas honestos, ou não
oportunistas, são difíceis de fazer calar. Um certo Filofila, por exemplo,
embora muito confiado no poder dos Orsini que disputavam o trono do Papa com os
Bórgias, no século XVI, disse o que quis de Alexandre VI e de seus parentes – ,
principalmente os filhos, César e a filha, Lucrécia. Atos incestuosos entre os
Bórgias, era o mínimo que divulgava em cartazes espalhados por toda a Roma no
tempo em que a família Bórgia detinha o poder no Vaticano. Iludiu-se de que seu
possível talento e seus protetores, o salvassem de suas ousadias – de seu
talante, digamos. Equivocou-se. Um dia seu corpo horrivelmente mutilado foi
descoberto nas ruas de Roma. Não chegou, porém, a ser uma morte vã: Victor
Hugo, escritor romântico francês, valeu-se de muitos dos informes de Filofila
para contar sobre a intensa criminalidade na alta Renascença Italiana.
Em relação a Pablo Neruda, as perguntas talvez não
tenham respostas. No atual período democrático da America Latina há uma clara
opção, menos pela violência do que pela compra de opiniões. Já agora e, por
enquanto, parece estarem excluídas as execuções sumárias. Se existem denúncias
a comprometer políticos ou homens poderosos, o melhor é a indiferença sob a
forma de mutismo. Nesses casos, nem mesmo as possíveis dúvidas podem ser
consideradas. Ou divulgadas. Se existem provas irrefutáveis contra alguém, e se
tiver interessados na grande imprensa que ele não seja implicado – excluam-se
as denúncias, por mais evidentes que sejam.
É o que talvez sobre em relação à morte de Pablo
Neruda. Vivemos tempos de bonanças e de silêncios. E talvez importe menos saber
se os corpos jogados num canto qualquer de uma cidade do Afeganistão sejam de
pessoas assassinadas, do que terem seus cadáveres urinados por soldados. Atos
delituosos não parecem ser mais a tortura e o assassínio, do que o xixi sobre
mortos.
Aventemos, enfim, que importe pouco que Pablo Neruda
tenha sido assassinado. Ele iria morrer de qualquer jeito.
*Enio Squeff é
artista plástico e jornalista
Fonte: Carta Maior
Publicado em Vermelho
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