Era uma
segunda-feira, lembro-me como se fosse hoje. Uma segunda de janeiro, de chuva,
bem cedo, quando o interfone do meu apartamento tocou.
- É o Messias!
Foi assim que o
porteiro do meu prédio anunciou a chegada do Messias, dono de um dos maiores
sebos de São Paulo. O porteiro deve ter se perguntado: mas que diabo veio fazer
o Messias aqui tão cedo? Eu sabia. Dois dias antes havia ligado para sua loja
no centro da cidade e anunciado que estava disposto a me desfazer de dez mil
discos de vinil, uma parede inteira da sala, todos eles arrumadinhos de A a Z.
De Abel Silva a Zezé Motta – a parte nacional – e de Alpha Blondy a ZZ Top, a
ala internacional.
Sabendo das minhas
preciosidades, Messias apareceu cedo disposto a arrematar tudo, até mesmo os
onze Long-Plays da Yoko Ono que ninguém ousava escutar, somente eu. Claro que
na véspera havia separado alguns que considerava não ter preço. O primeiro
disco que comprei na Lojas Gomes, avenida Afonso Pena, Belo Horizonte, ao lado
do Correio, assim que recebi o primeiro salário. Era o LP Domingo em que
Caetano cantava Coração Vagabundo ao lado de Gal. Coloquei de lado o Sgt.
Peppers dos Beatles, o Beggar’s Banquet dos Rolling Stones e o
Louco por Você onde Roberto Carlos canta com voz de João Gilberto. Separei
também o João Gilberto cantando Besame Mucho, o Renato Teixeira de Romaria
e o Chico cantando que “aqui na terra estão jogando futebol, tem muito samba,
muito choro e rock and roll”.
Isso sem contar o
primeiro do Pink Floyd, o primeiro da Janis Joplin, um do Yes, um do Pablo
Milanês e o do Bob Dylan cantando Like a Rolling Stone. Isso era
tudo que iria ficar, o resto ia embora sem pensar duas vezes, sem dó nem
piedade. Ah, ficou também o discobjeto Transa do Caetano cantando Nostalgia
e Mora na Filosofia. O resto iria embora numa Kombi meio caída de cor
azul calcinha que já estava estacionada na porta do prédio. Inclusive os Miles
Davis, os Jimi Hendrix, os Jerry Lee Lewis, os Bee Gees e todos os Ronnie Von,
inclusive aquele que ele canta Pra Chatear com o Caetano.
Vivíamos o começo de
uma pequena revolução tecnológica e me convenceram que não tinha mais sentido
ocupar aquele espaço enorme na sala da minha casa com vinis que rapidinho iriam
ficar ultrapassados e desaparecer do mapa.
- Nem agulha você vai
mais encontrar para sua vitrola!
Quando me disseram
isso veio um frio na barriga e resolvi me desfazer daqueles discos todos,
inclusive a coleção completa dos Mamas & Papas, dos Doors, dos Monkees e
dos Hermans Hermits. Foi tudo embora. Messias deu uma olhada geral, anunciou o
preço, topei e ele começou a enfiar todos eles em caixas de papelão, fora de
ordem para o meu descontentamento e espanto. Paulinho da Viola que vivia na boa
ao lado do Paulinho Boca de Cantor, Jorge Ben que conviveu ali anos quietinho
ao lado de Jorge Mautner, João Bosco ao lado de João do Vale, Walter Alfaiate
coladinho a Walter Franco, Tom Jobim com Tom Zé, Vinícius de Moraes juntinho do
Vinícius Cantuária, aquele sonho tinha acabado. Cheguei a ver numa caixa do
Messias Adoniran Barbosa ao lado do Queen e Louis Armstrong pertinho de
Amelinha, imagine só.
Messias ficou bem uma
hora, uma hora e meia na minha casa para conseguir enfiar os vinis nas caixas
de papelão, descer tudo pelo elevador de serviço e arrumar dentro da Kombi azul
calcinha. Minha sala, de repente foi ficando branca, vazia, esquisita. Quando
ele levou a última caixa e percebi que havia ficado num canto aquela vitrola
Technos meio solitária, negociei e ele acabou arrematando também aquele
trambolho. Pensando bem o que iria fazer com um aparelho que nem agulha mais
iria ter para comprar?
A estante foi
desmontada no dia seguinte e eu estava pronto para começar aos quarenta anos
uma vida nova, a era do compact-disc como chamávamos o cd. Aos pouquinhos fui
refazendo minha discoteca só que agora ocupando muito menos espaço. Comprava um
Alceu aqui, um Chico ali, um Gil, uma Elis, uma Sarah Vaughan, um Count Basie,
um Charlie Parker, uma caixinha de Dorival, uma coleção de Noel, e assim foi.
Quando batia saudade ia a Feira da Benedito Calixto e comprava um vinil do bom
e velho Tim Maia mas mais pra curtir, pra decorar.
Vinte anos depois cá
estou aqui no meu escritório rodeado de cds por todos os lados, acho que mais
de dez mil. Todos em ordem alfabética que agora vão de Adriana Calcanhoto a
Zizi Possi e de Ali Farka Toure a Wendo Kolosoy. E o que é pior, na dúvida se
desfaço de tudo ou não. Fiquei na dúvida quando minha filha disse que poderia
colocar tudo isso dentro de um aparelhinho do tamanho de uma caixa de fósforos,
organizadinhos de A a Z.
Há dois dias não
durmo direito. Acordo no meio da noite tendo pesadelos com o bom e velho
Messias encaixotando meus cds, inclusive os que mais gosto. Chico César
cantando De uns tempos pra cá, o Trio Esperança cantando
Impossível acreditar que perdi você, Wilson Batista cantando Não
sei dar adeus, o MPB4 cantando Lamento, os Beatles cantando Help
e João Gilberto cantando Chega de saudade.
Cronica do Villas –
Carta Capita
Alberto
Villas

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