por Miruna Genoino
No ano passado,
quando eu estava grávida de uns 7 meses, meu pai me telefonou contando uma
história impressionante. Contou que recebeu uma visita de um jornalista que tinha
se encontrado com um matador. Sim, estes do tipo matadores de aluguel... e que
tinha resolvido escrever um livro sobre a história deste personagem.
O mais incrível
é que este homem contou q ue tinha sido ele quem tinha dado um tiro no meu pai
quando o prenderam no Araguaia, o jornalista tinha ido lá em casa para
confirmar toda aquela história e viu que sim, era verdade o que o tal matador
contara. Meses depois, meus pais foram no lançamento do livro.
Nesta mesma
semana me contaram que o Nanan levou o livro para o quarto, leu o capítulo
referente ao meu pai de uma vez e entrou chorando no quarto deles, só
conseguindo expressar seus sentimentos confusos com um forte abraço no meu pai.
Quando isso aconteceu eu pensei que tinha que ler o livro, mas tanto eu quando
eles, pensamos que nao era hora de ler o tal livro, dado que Paula crescia
dentro de mim.
Quando meu pai e
o Nanan vieram à Sevilha conhecer a netinha trouxeram o livro para mim. "O
nome da morte", de Kléster Cavalcanti. Mas naquele momento ainda nao me
arrisquei a ler, dado que continuava muito emotiva.
Esta semana
resolvi ler o tal livro. Nao que esteja menos emotiva (será que alguma vez
estou menos emotiva?), mas enfim, que nem quando decidi que era hora de reler o
caderno da minha mae, decidi que queria saber o que aquele matador poderia
contar que eu já nao soubesse da história do meu pai na época da ditadura.
"- Vou mandar abrir fogo, Geraldo (nome de "guerra" do meu pai
na época) - Marra gritou. - Pode atirar. - respondeu Genoino, sem olhar para
trás. - Julao, derruba o cara - Como é que é? - o garoto perguntou - Atira no
cabra logo, antes que ele fuja. Mas lembre que eu quero ele vivo. Mirou nas
costas de Genoino, um pouco abaixo da linha do pescoço, do lado direito, e
esperou o que considerou ser o momento perfeito para o disparo.
Tinha de
aguardar o instante exato. Ao puxar o gatilho, percebeu sua presa se mover para
a esquerda. A bala pegou de raspao no ombro direito. Genoino sentiu como se uma
navalha lhe cortasse o braço. - Pegou o cara, Julao? - perguntou Carlos Marra -
Peguei sim, senhor. - Respondeu o rapaz. - ele tá caído no meio do mato. -
Vamos pegar esse safado."
Este é o trecho
mais "leve" da narrativa sobre quando prenderam meu pai com a ajuda
do tal matador. Depois descrevem as torturas a que foi submetido e como meu pai
sempre, sempre respondia que nao sabia nada, mesmo depois de estar horas e mais
horas sem comer nem beber nada, tendo levado todo tipo de surra, tendo sido
colocado de pé em latas de sardinha abertas, tendo levado queimaduras e mais
tarde, sofrido afogamento. Só dizia que nao sabia nada.
No livro até o
matador, entao com 17 anos e ainda longe de ser um matador de aluguel, fica com
pena do meu pai e pede baixinho que diga logo o que sabe para acabar logo com
isso. E meu pai, depois de dizer que nao sabia de nada, fica sem entender
aquela pequena mostra de solidariedade... e eu, como leitora e filha, fiquei
com aquela confusao sentimental, porque em parte sinto um nao sei quê pelo tao
Julao, uma raiva, uma indignaçao, revolta, e por outro, algo estranho, porque
foi o único que nao quis participar ativamente na tortura dele e que demonstrou
um mínimo de humanidade.
Mesmo assim,
sempre será uma pessoa que nao merece o meu respeito. Nem sei quem está lendo
até aqui, talvez só a minha mae, mas a verdade é que nao me importa. O que sim
me importa é soltar tudo isso que sinto depois desta leitura. Primeiro,
indignaçao.
Nao só pelo que
meu pai sofreu e aguentou, mas também por ter tido que escutar, depois de tudo
o que passou, os rumores de que teria delatado seus companheiros sob tortura.
Mesmo se o tivesse feito, quem poderia julgá-lo? E nao tendo feito, e tendo
dito todo o tempo que nao sabia de nada, como conter este grito dentro da
garganta de injustiça, injustiça, injustiça?
O segundo
sentimento é o de que, por fim, entendo de onde vem esta minha sensaçao de que
estive a um triz de nao existir. Lembro que quando minha mae contava histórias
de ex-namorados, de como quase nao veio para Sao Paulo, etc, era a primeira
coisa que pensava: se ela nao tivesse terminado com este fulano, eu e o Nanan
nao existiríamos.
Depois, quando
meu pai contava das torturas, sabia que esta sensaçao era ainda mais forte.
Lendo o livro vi que sim, que estivemos mesmo a uma pequena vírgula de nao
existir. Porque meu pai esteve muito, muito perto da morte. Porque o tao Julao
poderia ter menos pontaria.
Ou o tal Carlos
Marra poderia nao ter relembrado que queria os guerrilheiros vivos. Ou meu pai
poderia ter se mexido na hora errada como fez Maria Lucia Petit, que acabou
morta pelo mesmo Julao. Ou meu pai poderia ter sido menos forte fisicamente e
nao ter sobrevivido às torturas, como aconteceu com tantos outros. Mas
ele foi forte.
Lutou, venceu,
brigou, aguentou. E aí está... vivo. As injustiças, como ironia do destino,
ainda o perseguem implacavelmente. Mas eu sei que ele sempre será este
companheiro Geraldo, que mesmo com muita dor física, nao deixará nunca de lutar
por fazer valer os seus ideias. Que mesmo podendo escolher o caminho dos
covardes, vai sempre trilhar o caminho dos honrados.
Nao sei quantos
ainda dirao mentiras e injustiças sobre meu Genuba. Mas nao importa. Eu sempre
estarei aqui para contar a verdade e para orgulhar-me profundamente do meu pai,
que mesmo sem saber, naquele momento, no meio da selva, quando lutou pela
própria vida, também estava lutando pela vida de muitos mais que viriam pela
frente. É só olhar para a Paulinha para entender... Te amo papai, nao me canso
de orgulhar-me de você.
Miruna Genoino
Fonte – Blog Olhos do Sertão
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