Por Jorge Vieira
Do O Cafezinho
A história de uma farsa – Capítulo 8
A pedrinha de David
Desde o início, o processo do mensalão ofereceu
um triste espetáculo de mentiras, traições, covardia. O julgamento no STF não
foi diferente. Os ministros mais famosos por seu respeito ao garantismo e à
letra da Constituição mancharam sua própria história ao capitularem à infame
pressão de uma mídia notoriamente engajada politica e partidariamente.
Entretanto, a história registrará ao menos um
exemplo de heroísmo. Um heroísmo prosaico, delicado, feminino, composto apenas
de inteligência, amor, lealdade e desejo de justiça.
Falo da gentil e doce Andrea Haas, arquiteta e
esposa de Henrique Pizzolato. Quando a história definitiva do julgamento for
escrita, seu nome não poderá ser esquecido como aquela que lançou a pedrinha
que ajudou a derrubar um dos homens mais poderosos do país, o atual presidente
do Supremo Tribunal Federal, Joaquim Barbosa.
A ironia é que diversos réus contrataram os
escritórios de direito mais competentes da America Latina, incluindo Marcio
Thomaz Bastos, um dos maiores criminalistas brasileiros, mas ao cabo foi
Pizzolato, o réu mais frágil financeiramente (seus advogados, embora bons,
trabalham praticamente de graça), quem teve a defensora mais combativa e mais
astuta. Sua própria esposa.
Quando o mundo inteiro parecia desabar sobre a
cabeça do casal, Andrea Haas começou a estudar o caso por conta própria.
Sozinha, elaborou para seu marido a mais contundente defesa que um réu jamais
sonhou ter. Quase todas as reportagens, documentos e raciocínios lógicos que
hoje comprovam, definitivamente, a inocência de Pizzolato, ex-diretor de
marketing do Banco do Brasil, e derrubam os pilares de toda a absurda trama
criada pela Procuradoria Geral da República, nasceram da luta de uma mulher
indignada pela condenação injusta do seu companheiro de toda uma vida, de um
homem cujos anseios por justiça social, integridade e coragem, acompanhou e
admirou desde a mocidade. (Leia a emocionante carta de
Andrea a seu marido).
A última pedrinha com que este David de saias
derrubou o Golias – esse estamento híbrido formado por mídia, oposição
conservadora e figuras desqualificadas da procuradoria e STF – talvez tenha
sido lançada esta semana, com a divulgação em larga escala de uma denúncia
gravíssima. Na verdade, essa denúncia apenas completa (ou chega bem perto de
completar) um quebra-cabeça, cujo desenho Andrea Haas já conhece há tempos.
A denúncia consta de recente artigo de Maria Inês Nassif.
A jornalista do site Carta Maior denuncia, com base em documentos
coletados e ordenados logicamente por Andrea, o então procurador geral da
república, Antônio Fernando de Souza, e o relator do processo antes do mesmo se
tornar a Ação Penal 470, Joaquim Barbosa: eles sabiam da inocência de
Pizzolato e, portanto, da inconsistência da tese de acusação, bem antes da
denúncia ser discutida e aceita pelo Supremo Tribunal Federal. Não apenas
sabiam da existência desses documentos, como os esconderam deliberadamente.
Os leitores então me perguntam: e agora, Miguel?
O que acontece? É possível anular Ação Penal 470? Dê sua opinião, por favor!
Diante de inépcia tão flagrante, acho que é
possível, sim, anular a Ação Penal 470. E se não for, agora há elementos mais
consistentes para se levar o caso a uma corte internacional.
É óbvio, no entanto, que não será fácil. Como no
caso Dreyfus, na França, as pessoas e entidades envolvidas na acusação
enredaram-se tão profundamente nessa teia de mentiras que será difícil
encontrar uma saída “honrosa”. Nada melhor do que um divertido ditado popular
para definir a situação em que se encontra o STF: um mato sem cachorro.
Quem será o cachorro a tirar o STF da enrascada
em que se meteu, ao se submeter covardemente ao clima de linchamento criado
pela mídia?
Como explicar à nação que o tipo de prevaricação
cometido pelo Procurador, por Joaquim Barbosa e por alguns outros ministros foi
bem pior do que os crimes eventualmente cometidos pelos réus? Muito pior,
porque se houve crime (e não posso saber se os réus são inocentes em tudo), com
certeza não foi aquele da tese da acusação, enquanto o procurador e Joaquim
Barbosa pactuaram com um golpe branco. Os quarenta réus acusados pela denúncia
da Procuradoria foram escolhidos da forma mais odiosamente arbitrária e
tendenciosa entre os 126 relacionados na CPMI dos Correios. A trama foi discutida
e escrita primeiro; depois foram colhendo somente os réus, testemunhas e
documentos que podiam corroborá-la. Até mesmo a dona lógica foi posta de lado
quando se interpunha no caminho da acusação.
Agora temos provas de que, antes da aceitação da
denúncia pelo plenário do STF, o procurador geral da república e Joaquim
Barbosa conheciam o Laudo 2828 e outros documentos que inocentavam Pizzolato
(e, repito, derrubavam toda a Ação Penal 470), e não só os esconderam dos
demais juízes e advogados de defesa, como ainda mentiram descaradamente sobre
seu conteúdo.
Vamos focar um pouco na questão das datas,
porque elas são fundamentais para se visualizar o grau de sordidez da
procuradoria e do ministro Joaquim Barbosa.
O Laudo 2828 é fruto de
uma investigação da Polícia Federal junto ao BB e à Visanet, feita a pedido da
própria Procuradoria e deferido por Joaquim Barbosa, ao final de 2005. A PGR,
no entanto, estranhamente, não aguarda a conclusão do laudo, que acontece em
dezembro do mesmo ano, para apresentar a denúncia, em março de 2006. O laudo
foi mantido em segredo, inclusive dos próprios ministros do STF (à exceção de
Barbosa), antes e durante a aceitação da denúncia, que ocorreu em agosto de
2007. Só foi anexado à Ação Penal em novembro de 2007, meses depois do STF
aceitar (com a faca no pescoço, conforme disse Lewandowski) uma denúncia inepta,
e dois dias depois da publicação do seu acórdão. Os ministros, quando julgaram
a validez da denúncia, não tiveram acesso a um dos documentos mais
esclarecedores da Ação Penal.
Hoje temos à nossa disposição documentos
contendo datas e carimbos que comprovam a postura desonesta da PGR e de
Barbosa, e há uma novidade. Há apenas algumas semanas, ficamos sabendo que os
mesmos atores (PGR e Barbosa) usaram de um artifício maquiavélico para esconder
os documentos que “atrapalhavam” a sustentação da tese do mensalão, entre eles
o laudo 2828. Não só isso. Tudo aquilo que negaram aos réus petistas,
concederam aos “tucanos”. E nem falo dos tucanos do mensalão mineiro, e sim dos
servidores do BB, nomeados na gestão FHC, arrolados nas mesmas acusações que se
imputaram a Pizzolato, réus num inquérito em separado conduzido na 12ª Vara de
Brasília: desmembramento (não entraram na Ação Penal 470), julgamento em
primeira instância, e direito a uma investigação sigilosa, sem exposição
pública.
Quando se descobriu a existência desse
inquérito, soube-se também de outra investigação em andamento no STF, de número
2474, para a qual desde o início foram encaminhados documentos, entre eles o
Laudo 2828, que poderiam criar um estorvo para a Ação Penal 470. O diálogo
entre o PGR e Barbosa (registrado nos autos), tentando explicar
porque documentos e réus, referentes aos mesmos crimes que se imputavam a
réus da Ação Penal 470, deveriam figurar em inquéritos em separado,
entrará para a história como exemplo “supremo” de cinismo judiciário.
Diz Barbosa, em resposta ao pedido do PGR para
“desmembrar” o inquérito envolvendo não-petistas e documentos incômodos, no dia
10 de outubro de 2006:
“(…) defiro o pedido para que os (novos)
documentos sejam autuados em separado, como (novo) inquérito. …Por razões de
ordem prática, (para não) gerar confusão…”
Não gerar confusão… Ou seja, não atrapalhar os
planos de dar consistência a uma tese caduca desde a origem, e acusar
inocentes.
Outros réus do BB, arrolados na mesma acusação
que Pizzolato, ficaram a salvo do linchamento público promovido pela mídia. E
os documentos que poderiam trazer obstáculos à condenação dos réus da Ação
Penal 470 foram guardados sob o tapete de inquéritos secretos.
Em termos de cinismo e inépcia, contudo, nada
pode superar a própria denúncia de Antônio Fernando de Souza, encaminhada ao
STF, e aceita pela maioria dos ministros. O PGR afirma que “Pizzolato em
atuação orquestrada, desviou vultosas quantias do Fundo de Investimento
Visanet, constituído com recursos do Banco do Brasil” e apresenta como
principal prova documental uma auditoria feita pelo Banco do Brasil.
A acusação é do tipo barbosiano: contém tantos
erros numa só frase que mereceria se tornar um editorial do Globo.
O nome do Fundo não é Fundo de Investimento
Visanet. Fundo de Investimento supõe um cabedal com sócios-proprietários. O
nome verdadeiro é Fundo de Incentivo Visanet, e os documentos comprovam que
pertence exclusivamente à empresa Visanet. A auditoria mencionada cobre o
período de 2001 a 2005. Pizzolato foi nomeado apenas em fevereiro de 2003; o
petista é também culpabilizado, portanto, por um período (2001 e 2002) no qual
sequer trabalhava na diretoria de marketing. Não há nenhuma prova de “ação
orquestrada”. Pizzolato não tinha nenhum poder de ingerência sobre os recursos
em questão. O cargo de diretor de marketing, na hierarquia do Banco do Brasil,
era secundário; e os que tinham alguma influência sobre a gestão do fundo
Visanet, que era dinheiro privado, eram outros servidores, não Pizzolato,
conforme atesta o laudo 2828, pedido pelo próprio procurador e deferido por
Joaquim Barbosa.
Quando encaminha o Laudo 2828 ao STF, já depois
que a denúncia havia sido aceita, o procurador mente deslavadamente:
“Em que pese seu teor ser de leitura
obrigatória…, alguns trechos do Laudo 2828/2006 merecem destaque,
pois confirmam a imputação feita na denúncia de que Pizzolato e Gushiken
beneficiaram a empresa de Marcos Valério.”
Mentira. O Laudo 2828 sequer menciona o nome de
Pizzolato ou Gushiken.
Como se não bastasse, hoje sabemos que Barbosa,
durante o julgamento, cometeu um erro crasso sobre a data da morte
de um dos réus. Mais uma prova de sua incompetência e desonestidade. Em sua
ânsia de impor a pena mais severa possível a José Dirceu, uma ansiedade indigna
de um juiz, Barbosa informou ao plenário que José Martinez, então presidente do
PTB, ainda estava vivo em dezembro de 2003; ele havia falecido em setembro.
A informação foi aceita e usada para que as penas impostas a Dirceu fossem mais
pesadas, visto que, em dezembro de 2003, a legislação brasileira, por
orientação de Lula, se tornara mais severa contra a corrupção. E olha que
o ministro Marco Aurélio Mello observou, enfaticamente, que a data era
importante justamente por causa disso.
Curioso notar que nenhum meio de comunicação,
apesar das centenas de repórteres e especialistas diuturnamente analisando e
acompanhando o julgamento, que acontecia ao vivo na TV Justiça, identificou o
vexame de Barbosa.
Agora, mais que nunca, cresce a convicção de que
a população brasileira foi mais uma vez vítima. Promoveu-se, em canais de tv
que são concessão pública e que recebem bilhões de reais de publicidade
pública, uma mentira ao povo, de que o julgamento seria uma vitória “histórica”
contra a corrupção. Foi o contrário. Testemunhamos o maior fiasco da história
do STF, uma capitulação vergonhosa ao poder da mídia, ao conservadorismo e a
todos os setores derrotados pelo sufrágio popular. O processo conhecido por
mensalão foi a oportunidade para se obter uma revanche à vitória eleitoral de
Lula em 2002, e para isso arrolaram-se todos os truques, todas as mentiras,
todas as armas ainda à disposição do conservadorismo.
Derrotar essa mentira, ou este “mentirão”,
conforme bem denominou a corajosa jornalista Hildegard Angel, é uma tarefa
coletiva de todos os que lutam por justiça.
A corrupção tem de ser combatida duramente, e
temos que aprimorar constantemente nossos hábitos políticos, mas jamais
conseguiremos isso condenando inocentes e chancelando farsas.
Fonte – Blog do Nassif
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