Argentino Pablo Gutiérrez,
especialista em direitos humanos e tratados internacionais, lembra que o duplo
grau de jurisdição para os réus é uma das exigências da Corte Interamericana de
Direitos Humanos; ao não garanti-lo, diz, o julgamento violou o Pacto de São
José da Costa Rica; entrevista no blog Viomundo, de Luiz Carlos Azenha
por Conceição Lemes, do blog Viomundo
Ao longo do julgamento da Ação Penal 470 no
Supremo Tribunal Federal (STF), o Viomundo entrevistou os
juristas Dalmo de Abreu Dallari, Rubens Casara e Luiz
Flávio Gomes. Os três disseram que o caso do mensalão quase certamente será
remetido à Corte Interamericana de Direitos Humanos, à qual o Brasil aderiu há
mais de dez anos.
Motivo: vários equívocos no processo. Um deles,
a dupla-função. Quem preside a fase de investigação não pode depois participar
do julgamento, porque aí cumpre os papéis de investigador e de juiz.
Foi o que fez o ministro Joaquim Barbosa, atual
presidente do Supremo. Pelo artigo 230 do STF, não há nada errado com essa
conduta.
Porém, para a jurisprudência da Corte
Interamericana de Direitos Humanos esse duplo-papel é inadequado, independentemente
de quem seja o ministro. O juiz tem de ser imparcial, não pode ter vínculos com
as provas antes do julgamento.
Outro equívoco apontado pelos juristas ouvidos
pelo Viomundo: 35 dos 38 réus não tiveram direito à segunda instância. Por
decisão do Supremo, o julgamento de todos foi apenas em uma instância, o STF,
embora 35 não tivessem direito ao chamado foro privilegiado.
Tão logo se aventou a possibilidade de os réus
apelarem à Corte Interamericana, os ministros Joaquim Barbosa e Marco Aurélio
Mello desdenharam. Barbosa chamou a ação de tentativa de "enganar o
público leigo" por pensar que poderia ser revertida. Mello definiu-a como
"direito de espernear".
O professor argentino Pablo Angel Gutiérrez
Colantuono discorda da interpretação de ambos. Especialista em direitos humanos
e tratados internacionais, é autor do livro Administración Pública,
Juridicidad y Derechos Humanos. A convite do Instituto Brasileiro de Estudos
Jurídicos da Infraestrutura (Ibeji), Gutiérrez esteve recentemente em São Paulo,
para fazer uma palestra na Advocacia Geral da União. No final dessa semana, nós
conversamos mais sobre o assunto.
Viomundo – Os réus condenados na Ação Penal 470
podem realmente recorrer à Corte Interamericana de Direitos Humanos?
Pablo Gutiérrez – Eu não conheço tecnicamente o caso a que você
refere. Porém, geralmente, nos países que fazem parte do Pacto de São José da
Costa Rica, qualquer cidadão que teve violado os seus direitos humanos pelo
Estado pode, uma vez esgotados todos os recursos internos, apresentar o
"seu caso" à Comissão Interamericana de Direitos Humanos. E esta, se
julgar procedente, apresentar "o caso" à Corte Interamericana de
Direitos Humanos.
O Brasil, como você bem sabe, é Estado Membro do
Pacto de São José. Portanto, qualquer cidadão brasileiro pode representar ao
sistema americano de direitos humanos, desde que alguns procedimentos sejam
seguidos.
Viomundo — O senhor considera
"cinismo" ou "enganação do público leigo" recorrer à Corte
Interamericana?
Pablo Gutiérrez – A proteção dos direitos humanos é dever primário dos
Estados Membros do Pacto. Isso vale para todos os poderes. Apelar à Justiça
nacional ou internacional é um direito fundamental do homem -– a chamada tutela
judicial efetiva.
A Corte Interamericana tem insistido para que os
juízes de cada Estado Membro efetuem o denominadocontrole da convencionalidade,
enquanto decidem sobre causas judiciais.
Controle da convencionalidade significa
analisar os níveis de compatibilidade de normas, atos administrativos e
interpretações judiciais em relação às normas do sistema americano de direitos
humanos. Esse controle deve ser realizado automaticamente pelos juízes, de
ofício, ou seja, sem que as partes solicitem.
Todo cidadão também tem o direito de solicitar
aos juízes que apliquem ao seu caso o controle da convencionalidade. Portanto,
é fundamental que o Estado Membro assegure internamente o direito a esse
recurso -– artigo 25 e 8 do Pacto de São José da Costa Rica –, que deve ser
julgado por juízes independentes e imparciais em relação ao processo em
questão, assegurando, especialmente nas questões penais, a garantia do duplo
grau de jurisdição [também chamado por alguns juristas de duplo grau de
recurso].
Uma sentença judicial deve ser sempre revisada
por uma segunda instância superior àquela que proferiu a condenação. É a
chamada "garantia do duplo grau de jurisdição ou do duplo controle" –
artigo 8, parágrafo 2, alínea h, do Pacto de São José da Costa Rica.
Em resumo: recorrer à Corte Interamericana de
Direitos Humanos é uma garantia fundamental protegida internacionalmente, faz
parte da tutela judicial efetiva como direito humano da pessoa.
Viomundo – Qual o papel da Corte Interamericana?
Pablo Gutiérrez – Nos países que aceitaram soberanamente a sua
jurisdição, a Corte Interamericana de Direitos Humanos é o último tribunal em
matéria de direitos e garantias.
É o órgão jurisdicional do sistema americano de
direitos humanos. Ele foi pensado com as seguintes características:
a) é uma proteção transnacional dos direitos e
garantias do homem;
b) é uma proteção subsidiária à do Estado. Isso
significa que cabe primeiro ao Estado proteger, promover e garantir
internamente os direitos humanos. E todas as autoridades públicas — executivo,
legislativo e judicial – são obrigadas a fazê-lo;
c) se o Estado Membro viola esse sistema de
proteção e garantias,o cidadão, uma vez esgotados todos os recursos legais e
administrativos, pode recorrer à instância internacional, via Pacto de São José
da Costa Rica.
Viomundo – Como se dá esse processo?
Pablo Gutiérrez – Apresenta-se uma denúncia à Comissão Interamericana
de Direitos Humanos. Aí, ao tramitar, é dada ao Estado a oportunidade de se
defender e até mesmo propor um acordo. A Comissão é que vai decidir se o caso
deve ou não ser submetido à Corte Interamericana de Direitos Humanos.
Uma vez apresentado o caso à Corte
Interamericana, ela analisa se houve ou não violação de alguma das obrigações
gerais dos artigos 1.1 e 2 do Pacto de São José da Costa Rica.
O artigo 1.1 estabelece que os Estados
Membros têm de respeitar os direitos e liberdades reconhecidos pela Corte para
garantir o pleno e livre exercício a toda pessoa sob sua jurisdição. Isso se
impõe não apenas em relação ao poder do Estado mas também em relação à atuação
de terceiros.
O artigo 2 estabelece as medidas
necessárias para garantir os direitos humanos previstos no Pacto de São José em
relação a alguma obrigação especial. É importante registrar que os tratados de
direitos humanos, como o de São José da Costa Rica, outorgam direitos aos cidadãos
e deveres principalmente aos Estados. E os Estados estão obrigados a cumprir
tanto o Tratado de São José como as sentenças da Corte Interamericana de
Direitos Humanos, porque assim determina o Tratado. Também porque a Convenção
de Viena de Tratados estabelece que eles sejam cumpridos sob o princípio da boa
fé.
Viomundo – Em que casos se pode recorrer à Corte
Interamericana?
Pablo Gutiérrez – A causa é a violação pelo Estado Membro dos deveres
gerais de assegurar, promover e proteger os direitos e garantias assegurados no
Pacto de São José da Costa Rica – artigos 1.1 e 2 do Pacto. O Estado está
obrigado não apenas a eliminar os obstáculos internos, mas também a
adotar decisões que promovam e protejam positivamente os direitos humanos.
Viomundo – A Corte Interamericana poderia
funcionar como uma espécie de tribunal para o Supremo Tribunal Federal
brasileiro?
Pablo Gutiérrez – Tecnicamente a Corte Interamericana de Direitos
Humanos não é uma quarta instância judicial, tampouco é um "tribunal de
apelação" dos tribunais internos de cada país.
A Corte Interamericana não julga novamente as
responsabilidades penais, civis. O que ela faz é condenar a violação por parte
do Estado por atos administrativos, leis ou sentenças judiciais, que violem os
direitos humanos.
A Corte Interamericana de Direitos Humanos tem
condenado Estado Membro por não assegurar investigação efetiva e processo
justo, por exemplo. Também por não garantir proteção de menores de idade,
populações indígenas, população privada de liberdade. Assim como por violar a
liberdade de imprensa, a privacidade e a propriedade, entre outras tantas
infrações.
Agora, uma vez o Estado condenado pela Corte
Interamericana, porque seus processos judiciais e administrativos desrespeitam
o sistema internacional, ela pode, no âmbito interno, direta ou indiretamente,
gerar consequências:
a) uma nova ação na Justiça;
b) indenização por parte do Estado pela
infração;
c) atos públicos de reconhecimento da
responsabilidade internacional;
d) medidas para conscientizar os funcionários
públicos – inclusive o Poder Judiciário – dos parâmetros que regem o sistema
internacional de direitos humanos.
Um exemplo das implicações das decisões da Corte
Interamericana no sistema judicial é é o caso da Argentina e a atuação
judicial nos crimes de lesa humanidade.
A adequação da Corte Suprema de Justiça da
Argentina aos critérios da Corte Interamericana gerou a investigação dos
delitos cometidos durante a última ditadura militar, declarando nulas as leis
de anistia daquele tempo e aceitando esses crimes como imprescritíveis. Esse é
justamente o critério da Corte Interamericana de Direitos Humanos.
Nesse e em quaisquer outros tipos de processos
judiciais, é sempre imprescindível o respeito irrestrito à garantia do devido
processo judicial. Ou seja, presunção da inocência, duplo grau de jurisdição,
devida fundamentação das sentenças, direito a um advogado, um intérprete no
caso de ser um estrangeiro, oferecer, produzir e controlar as provas, direito a
um juiz imparcial e independente, entre outras garantias.
Na Argentina, a Suprema Corte de Justiça tem um
critério de ampla convergência entre as suas sentenças e as da Corte
Interamericana. Parte disso se explica porque o Pacto de São José da Costa
Rica, entre outros instrumentos internacionais, foi incorporado ao mesmo nível
que a Constituição Nacional no sistema legal argentino.
Viomundo – As decisões da Corte Interamericana
têm caráter de recomendação ou de determinação ao Estado Membro condenado?
Pablo Gutiérrez – Não são recomendações, são sentenças que condenam e
ordenam meios eficazes para reparação das vítimas. Desde 25 de setembro de
1992, o Brasil é um Estado Membro da Convenção Americana. O artigo 62 dessa
mesma convenção reconheceu a competência contenciosa da Corte em 10 de dezembro
de 1998. O artigo 67 da Convenção Americana estipula que as sentenças da Corte
devem ser prontamente cumpridas pelo Estado e de forma integral.
Além disso, o artigo 68.1 da Convenção Americana
estipula que os Estados Membros se comprometem a cumprir a decisão da Corte
Interamericana em todos os casos em que sejam partes. Portanto, os Estados
devem assegurar internamente a implementação do disposto pela Corte
Interamericana em suas decisões.
Tal como diz a Corte Interamericana de Direitos
Humanos "a obrigação de cumprir o disposto nas sentenças do Tribunal
[Corte Interamericana de Direitos Humanos] corresponde a um princípio básico do
Direito Internacional, respaldada pela jurisprudência internacional, segundo a
qual os Estados devem cumprir com as suas obrigações decorrentes de tratados
internacionais de boa fé (pacta sunt servanda) e, como tem
assinalado esta Corte e o disposto no artigo 27 da Convenção de Viena sobre o
Direito dos Tratados, de 1969, aqueles não podem, por razões internas, deixar
de assumir a responsabilidade internacional já estabelecida. As obrigações
convencionais dos Estados Membros vinculam a todos os poderes e órgãos do
Estado."
Viomundo – O que pode acontecer se o país não
acatar as determinações da Corte?
Pablo Gutiérrez – Uma vez pronunciada a sentença condenatória, a Corte
Interamericana de Direitos Humanos tem poderes inerentes às funções
jurisdicionais. Uma delas é a supervisão do cumprimento das suas decisões.
Essa atribuição inclui o dever do Estado de
informar à Corte Interamericana sobre as medidas adotadas para o cumprimento do
que ela ordenou em suas sentenças.
A informação adequada ao Tribunal sobre como
cada um dos pontos determinados é fundamental para avaliar a situação do
cumprimento da sentença no seu conjunto. Também, e em caso de persistência do
não cumprimento por parte do Estado Membro, essa informação constará dos
relatórios anuais da Organização dos Estados Americanos (OEA) sobre os ditos
descumprimentos.
É importante ter em mente que é cada vez mais
forte a vinculação dos sistemas internacionais de direitos humanos com aqueles
que têm como objeto atingir os sistemas comunitários ou de integração,
principalmente econômicos.
Um exemplo é a União Europeia. A condição para
integrá-la é que os novos países adotem o denominado Tratado de Direitos
Humanos Europeu, o Tratado de Roma.
Um exemplo de cumprimento por parte do Brasil de
sentenças da Corte Interamericana de Direitos Humanos é o caso Escher y otros
vs. Brasil. A resolução, de 19 de junho de 2012, determinou o pleno cumprimento
pelo Brasil da sentença da Corte Interamericana, ditada em 6 de julho de 2009.
Viomundo — A Corte Interamericana pode
determinar um novo julgamento da Ação Penal 470?
Pablo Gutiérrez – A Corte Interamericana de Direitos Humanos no caso
Herrera Ulloa vs Costa Rica, em 2 de julho de 2004, ordenou o Estado a tornar
sem efeito a sentença ditada em seu país por haver violado, entre outras, a
garantia do artigo 8, parágrafo 2, alínea h. É a garantia do duplo grau de
jurisdição!
É um exemplo daquilo que pode ocorrer se um país
incorre em responsabilidade internacional: tornar sem efeito o ato estatal – no
caso a sentença – ou os efeitos de tal ato. Nesse caso, também se
condenou a Costa Rica a, num prazo razoável, modificar o seu sistema legal
interno para assegurar o direito a uma dupla instância.
Caso se detecte essa infração em algum caso no
Brasil e ela, junto com outras infrações, violem os artigos 1.1 e 2 do Pacto de
São José da Costa Rica, a Corte Interamericana de Direitos Humanos pode tornar
sem efeito a sentença do Estado brasileiro.
Viomundo – No julgamento da Ação Penal 470, os
réus não tiveram direito ao duplo grau de jurisdição. Isso pode fazer com que a
Corte Interamericana torne as sentenças sem efeito e determine novo julgamento?
Pablo Gutiérrez – A Corte Interamericana de Direitos Humanos pode
ordenar anulação do julgamento porque ele violou o Pacto de São José de
Costa Rica. O direito ao duplo grau de jurisdição é uma das exigências da
Corte Interamericana de Direitos Humanos.
Fonte
– Brasil247
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