No momento em que é criada a
Comissão da Verdade, país retoma o assunto
Cena do filme ‘O ano em que meus pais saíram de férias’, de Cao Hamburger
RIO - Foram três décadas até que o Brasil criasse sua
Comissão da Verdade. Mas o grupo, que foi instaurado oficialmente há 15 dias
para investigar as violações de direitos humanos cometidas durante o regime
militar, de longe não representou a única demora em se tratando da ditadura
brasileira. Diferentemente dos vizinhos Argentina e Chile, que também sofreram
com abusos de governos militares, as artes nacionais pouco se debruçaram nos
anos seguintes sobre casos e histórias relacionadas ao período. As razões, de
acordo com quem viveu a época, envolviam o medo de repressões mesmo após o fim
do regime, as tradições alegóricas da estética brasileira e também as as características da própria ditadura no país. Mas esse panorama vem mudando.
Em cartaz nos cinemas, “Uma longa viagem”, de Lúcia
Murat, é um documentário pessoal sobre a história da família da diretora:
enquanto ela estava presa no Brasil, seu irmão Heitor rodava o mundo em
delírios provocados pelo uso excessivo de drogas. No mês de maio, Paulo José
encenava no Rio a peça “Murro em ponta de faca”, um texto de Augusto Boal sobre
um grupo de exilados que já havia sido dirigido pelo próprio ator em 1978 — na
ocasião, com direção musical de Chico Buarque. Já nas livrarias, duas novas
obras mostram a atualidade do tema: o romance “Sucursal do inferno” (editora
Prumo), do escritor e dramaturgo Izaías Almada, é uma sátira sobre o período a
partir de uma investigação jornalística que aborda democracia e demônios; e
“Ditadura no ar”, de Raphael Fernandes e Abel, é uma série independente de
quadrinhos que dá um tom noir às histórias do regime.
— Houve muita coisa escrita, muitos registros de
memória num primeiro momento de pós-anistia, mas depois houve uma certa
rejeição ao período. Era como se fosse um pouco feio falar daquilo, como se
fosse algo a se esquecer, como se fosse brega. Senti que não era moderno falar
sobre ditadura — afirma Lúcia Murat, cujo primeiro filme sobre o tema, “Que bom
te ver viva”, foi lançado em 1989. — E também havia muito medo. Eu achava que
iriam jogar uma bomba na minha casa quando o “Que bom te ver viva” chegou aos
cinemas. Hoje, o que mais me gratifica é ver que há um grupo de jovens
desenvolvendo ações de denúncia. Eles é que foram às ruas se manifestar a favor
da Comissão da Verdade.
O primeiro filme brasileiro de repercussão a abordar o
período foi “Pra frente Brasil”, de Roberto Farias. Sua trama emparelhava a
torcida brasileira durante a Copa do Mundo de 1970 com a tortura brasileira
durante o regime militar. Seu lançamento estava programado para 1982, ano de
outra Copa do Mundo e também de eleições diretas para os governos estaduais. O
sinal de alerta, então, foi aceso entre os militares, e o filme foi
imediatamente proibido. A situação ficou ainda mais delicada porque Roberto
Farias havia sido, até 1979, o diretor-geral da Embrafilme, o órgão
governamental de apoio à distribuição e à produção de filmes. No lugar dele,
assumiu o cargo o diplomata Celso Amorim, que tinha no currículo alguns
trabalhos no cinema e hoje é ministro da Defesa no governo Dilma Rousseff. Com
Amorim na Embrafilme e já num processo de abertura política consolidado, “Pra
frente Brasil” recebeu verba pública para sua produção. Amorim, por isso,
acabou destituído do cargo; Farias teve que devolver o dinheiro investido no
filme; e “Pra frente Brasil” só pôde ser exibido depois da Copa e das eleições.
— Foi um ano tenso. As pessoas me diziam para ter
cuidado, para não falar ao telefone — lembra Farias. — Depois, houve quem me
criticasse, dizendo que eu não havia ido suficientemente fundo na história do
“Pra frente Brasil”, que eu tinha limpado a cara dos militares. Mas outro filme
mesmo só foi feito quase dez anos depois. As pessoas não tiveram coragem para
se atrever. Um ano antes da censura a “Pra frente Brasil”, o escritor e crítico
literário Silviano Santiago também sentiu o significado de se abordar, naquele
momento, a ditadura por meio de um trabalho artístico. Em 1981, ele publicou o
livro “Em liberdade” (hoje em catálogo da editora Rocco), certamente um dos
mais importantes romances da década a tratar do governo militar.
Mas a abordagem era indireta. As páginas de “Em
liberdade” eram preenchidas com um diário ficcional de Graciliano Ramos durante
o regime ditatorial de Getúlio Vargas, na década de 1930. Pela alegoria,
Silviano perdeu o emprego na universidade em que trabalhava.
— No Chile e na Argentina, a ditadura foi mais
violenta, e por isso as reações artísticas foram mais fortes. Houve, no caso
deles, um gosto por explorar imagens jornalísticas, que de certa forma nos
incomodavam no Brasil — avalia Silviano. — A questão é que minha geração tinha
um estética nitidamente artística. Fomos formados por Drummond, João Cabral e a
poesia concreta. Tínhamos uma incapacidade de tratar o real pela frente.
O próprio tropicalismo era altamente alegórico. Um
tratamento mais direto daquela realidade acabou ficando para décadas seguintes.
Nos anos 2000, uma série de filmes foi feita acerca de temas relacionados à
ditadura, principalmente documentários. Os assuntos passavam por um empresário
dinamarquês que incentivava a tortura (“Cidadão Boilesen”, de Chaim Litewski),
pela visão de um menino cujos pais precisam fugir da repressão (“O ano em que
meus pais saíram de férias”, de Cao Hambuger), pela reunião de ex-guerrilheiros
que querem se vingar de seu torturador (“Ação entre amigos”, de Beto Brant),
pela conspiração entre governos militares sul-americanos (“Condor”, de Roberto
Mader), por um militante que se esconde num apartamento (“Cabra-cega”, de Toni
Venturi) ou pela misteriosa morte de um ex-exilado (“Diário de uma busca”, de
Flávia Castro).
— Na Argentina, eles tiveram coragem de botar o dedo
na ferida antes. Aqui, bem no nosso estilo malemolente, a gente foi postergando
o momento de encarar isso para valer. Nossa anistia foi pela metade, tudo foi
um tanto pela metade — afirma Isa Ferraz, diretora do documentário
“Marighella”, que estreia em agosto, e ela própria sobrinha de Carlos Marighella,
guerrilheiro assassinado em 1969 que serviu de inspiração a seu filme. — Em
1986 escrevi um primeiro roteiro sobre ele, mas não consegui captar um tostão
para fazer o documentário. Era tudo muito fresco, havia medo por todos os
lados. O tema ainda era tabu.
Essa sensação de tabu, como a própria polêmica em
torno da criação da Comissão da Verdade demonstra, propagou-se pelos anos. Em
2000, o jornalista Flávio Tavares publicou “Memórias do esquecimento” (editora
Globo), um livro-reportagem sobre o período do regime militar. Mas, antes,
ouviu recusas de duas grandes editoras, uma do Rio e outra de São Paulo, por
pretextos variados. O texto era baseado nas recordações de Tavares: ele foi
preso e esteve entre os libertados no sequestro do embaixador americano Charles
Elbrick (tema do documentário “Hércules 56”, de Silvio Da-Rin, e também do
livro “O que é isso companheiro?”, de Fernando Gabeira, cuja trama chegou aos
cinemas pela direção de Bruno Barreto).
— Mesmo depois da abertura política, a sociedade
brasileira ficou impregnada de muito medo. A arte tinha liberdade, mas não
estava mais acostumada a exercer essa liberdade. Havia uma vigilância indireta
ao pensamento — diz Tavares, que lançou este ano o livro “1961 — O golpe
derrotado” (editora L&PM). — Não havia como se acabar com o terror de uma
hora para outra, por decreto. É um processo, ainda mais numa sociedade em que
estamos acostumados a varrer o lixo para debaixo do tapete. Para esse
exorcismo, se olharmos o passado sem preconceito, a Comissão da Verdade será
fundamental.
Tavares também acompanhou de perto o processo de
redemocratização na Argentina, onde viveu por 21 anos, primeiro como exilado e
depois como correspondente. Lá, lembra ele, os julgamentos das juntas militares
depois das eleições de 1983 prepararam a sociedade para “se libertar de seus
fantasmas”.
Poucos depois, em 1985, o diretor Luis Puenzo já
lançava “A história oficial”, longa-metragem sobre a adoção de uma criança
filha de presos políticos da ditadura. A trama, que havia sido inspirada
exatamente em depoimentos dados durante os julgamentos dos militares, acabou
premiada com o Oscar em Língua Estrangeira.
— Na Argentina, as artes brotaram de forma fantástica,
mais livre e aberta. Nos anos 1980, foram lançados diversos livros-reportagens
sobre a história recente da Argentina. Isso só foi acontecer no Brasil agora,
há poucos anos. Também no cinema, a Argentina se fortaleceu com histórias sobre
a ditadura e hoje é reconhecida como o país que faz alguns dos melhores filmes
do mundo — explica Tavares.
No Chile, as manifestações artísticas tiveram um
comportamento semelhante ao ocorrido na Argentina. Os documentários de Patricio
Guzmán, como “A batalha do Chile” e “O caso Pinochet”, aqueciam a História.
Enquanto filmes de ficção, como “Machuca”, de Andrés Wood, e “Os náufragos”, de
Miguel Littín, propunham abordagens criativas acerca do tema. Hoje, o grande
expoente das artes chilenos a lidar com a ditadura é Pablo Larraín, diretor de
“Tony Manero”, “Post mortem” e “No”. Este último, com Gael García Bernal no
elenco, foi uma sensação na edição deste ano da Quinzena dos Realizadores no
Festival de Cannes. Sua trama se apoia no plebiscito de 1988, cujo resultado
foi o fim do governo do general Augusto Pinochet. Um de seus produtores foi o brasileiro
Daniel Dreifuss.
— O “No” é um filme sobre o Chile, mas consigo ver ali
a realidade de qualquer país que luta pela liberdade civil — afirma Daniel, que
é filho do falecido cientista político René Dreifuss, autor de “1964: A
conquista do Estado”, livro lançado em 1981 que é considerado uma das
principais obras de História a abordar o golpe militar brasileiro. — Houve uma
agressividade maior na ditadura chilena que levou a filmes como esses. O Pablo
cresceu com tanques nas ruas, com campos de prisioneiros espalhados pelo país,
com pessoas sendo jogadas de aviões. Esse nível de brutalidade fez com que eles
voltassem para si mesmos. No Brasil, não houve isso. E, depois, tenho a
impressão que a juventude ficou mais preocupada em resultados de bilheterias do
que encarar a realidade. Não me parece que houve uma vontade de se olhar para
trás.
A sensação de Dreifuss é compartilhada por muitos, mas
há também um sentimento forte de mudança no ar. A Comissão da Verdade tem feito
com que muitos se mobilizem para relembrar a ditadura brasileira. Inclusive nas
artes.
— Quando você não tem movimentos sociais e
organizações de mídia para investigar o passado histórico do país, você fica
sem força para levar essa discussão à sociedade, mesmo por meio das artes.
Agora, com os novos tempos, esperamos um caminho diferente — afirma Izaías
Almada.
Fonte - G1

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