Por Cadão
Volpato em 05/06/2012
Getúlio – 1882-1930. Dos Anos de Formação à Conquista do Poder, de Lira Neto, 624 pp., Companhia das
Letras, São Paulo, 2012; R$ 52,50; reproduzido do Valor
Econômico, 25/5/2012; intertítulos do OI
“Sou um repórter.” Uma frase simples como essa
vira uma espécie de profissão de fé para um dos melhores biógrafos da geração
que sucede a nomes tarimbados como os de Fernando Morais e Ruy Castro, autores
de duas das mais bem-sucedidas biografias dos últimos anos, as de Assis
Chateaubriand (Chatô – O Rei do Brasil) e Nelson Rodrigues (O Anjo Pornográfico).
O cearense Lira Neto, 49 anos, já escarafunchou com métodos jornalísticos vidas
tão díspares quanto as do escritor José de Alencar, do presidente Castello
Branco, da cantora Maysa e do Padre Cícero. Agora, Lira Neto está de volta às
livrarias com um relato peso-pesado, a história do personagem mais emblemático
da nossa vida política, o presidente Getúlio Vargas (1882-1954). Getúlio –
1882-1930. Dos Anos de Formação à Conquista do Poder é parte de uma trilogia
que só deve ficar pronta em 2014, quando se comemoram os 60 anos da morte do
antigo ditador e depois presidente eleito democraticamente.
“Agora sou um biógrafo profissional”, diz Lira
Neto. Ele está há dez anos em São Paulo, mas não faz muito tempo desde que
conseguiu definir a sua profissão com todas as letras. Lira Neto ralou em
diversas redações antes de se aventurar no lado escuro de Getúlio Vargas. No
jornal O Povo, de Fortaleza, foi repórter, editor e ombudsman. “A experiência
de ombudsman foi melhor que um doutorado em jornalismo”, diz. “No jornal, a
gente trabalha com o piloto automático ligado e tem pouco tempo para refletir
sobre o próprio ofício.”
Personagem contraditório
Lira Neto tinha pouco tempo também para escrever
os textos que não fossem do jornal. Seus livros começam tateando um espaço na
própria agenda do jornalista. A primeira investida do escritor foi sobre a
biografia de um médico sanitarista pouco conhecido, Rodolfo Teófico, que
enfrentou as epidemias de varíola no Nordeste já na virada do século 19 para o
século 20. Chama-se O Poder e a Peste (1999). “Fiquei surpreso ao ver o meu
biografado entre os 100 nomes brasileiros mais importantes do século levantados
pela revista Veja.” Lira Neto pesquisa com a perspectiva de jornalista e
escreve com o estilo narrativo de um fã confesso de Ernest Hemingway.
Dessas primeiras 200 páginas produzidas nas
brechas do trabalho jornalístico, Lira Neto saltou para um volume mais robusto,
o da biografia Castello – A Marcha para a Ditadura (2004), sobre o primeiro
presidente da era militar. Com ela, as coisas começam a melhorar no quesito
tempo. “Eu estava decidido a sair das redações e tentar uma carreira solo.”
Lira Neto conseguiu se segurar escrevendo como free lancer para jornais e
revistas. De forma inconsciente, estabeleceu um norte para o seu interesse como
biógrafo – o poder, já estampado na capa do primeiro livro. É a partir deste
fio que ele explica, hoje, onde está o tema numa biografia como Maysa: Só Numa
Multidão de Amores (2007). “Ali tem outras facetas do poder, como, por exemplo,
a mídia”, ele diz. Maysa foi um sucesso tão grande que lhe possibilitou romper
de vez com os grilhões da redação, incluindo os “frilas”. O livro está na 13º
edição, foi minissérie de sucesso na Rede Globo e partiu de arquivos e diários
cedidos pelo filho da cantora, Jayme Monjardim, que, aliás, não gostou nem um
pouco do resultado, apesar de ter dirigido o programa e de ter purgado aí todo
o desencanto que nutria em relação à mãe. Ponto para o biógrafo.
Esse tipo de acesso a documentos-chave vem sendo
uma característica do trabalho do Lira Neto biógrafo. Para escrever Padre
Cícero: Poder, Fé e Guerra no Sertão (2009), um volume de peso respeitável, o
escritor usou uma misteriosa fonte – que ele não revela de jeito nenhum. Graças
a ela, ele mergulhou em arquivos secretos do Vaticano. No caso de Castello
Branco, Lira Neto pode examinar os arquivos do brasilianista John Foster
Dulles, que tinha escrito dois livros sobre o militar. “Ele generosamente me
passou todas as notas de entrevistas com gente que eu já não conseguiria
entrevistar: Juscelino, Jango. Ele confiou integralmente no meu trabalho e isso
foi decisivo.” Um dia, em casa, Lira Neto recebeu uma encomenda por Sedex que
era um verdadeiro tesouro: 12 livros encadernados com as notas datilografadas
das entrevistas. “E tive acesso irrestrito ao acervo do próprio Castello, sob a
guarda da Escola de Comando e Estado Maior do Exército, no Rio (a Eceme). Essas
informações não mudaram a história do Brasil, mas serviram para elucidar melhor
esse personagem tão contraditório, um homem que se dizia um democrata, um
humanista, amigo de Raquel de Queirós, a quem contou histórias engraçadíssimas,
mostrando que, por incrível que pareça, era um sujeito bem humorado.”
Homônimo de Getúlio
No caso de Getúlio, o faro de repórter falou mais
alto. Havia um agravante poderoso. Em matéria de volume, os livros escritos
sobre o político gaúcho tomam quase todas as prateleiras das estantes de Lira
Neto no escritório que ele ocupa dentro de casa, no bairro do Sumaré, em São
Paulo. Contra tanta informação (e desinformação), o escritor teve de se
esmerar. Uma das verdades propagadas ao longo do tempo dizia respeito a um caso
de assassinato do qual Getúlio era acusado, e sobre o qual o grande inimigo dele,
Carlos Lacerda, costumava vociferar com a boca cheia de fel. Ainda nos anos 20,
uma índia é estuprada e um cacique morto a tiros por um certo Getúlio Dornelles
Vargas, acompanhado de um cúmplice. Getúlio consegue fugir da prisão de um
jeito suspeito e tudo fica por isso mesmo.
Lira Neto fez o que qualquer repórter um pouco
mais consciente faria: foi atrás do processo e o leu de cabo a rabo. Ali, na
altura da página 100, ele descobriu uma verdade que contradiz diversos livros
escritos sobre o ditador, preocupados demais com outras questões que não essa.
O homem que cometera tais atrocidades contra os índios era um homônimo do
ex-presidente Getúlio Vargas.
A historiografia agradece
“Esta biografia é o projeto da minha vida”,
afirma Lira Neto. “Toda informação vem referendada por uma fonte histórica.” Os
especialistas do mundo acadêmico acolheram com simpatia o primeiro volume da
série. O historiador Boris Fausto, que escreveu um clássico sobre a Revolução
de 30, dá o tom na quarta capa do livro: “Com base numa impressionante
pesquisa, Lira Neto narra, com brilho e riqueza de detalhes, a história da vida
pessoal e da vida pública de Getúlio.”
Escrita e pesquisada com a perspectiva do
jornalista, ajudado por uma equipe de jovens pesquisadores, e arrematada com o
estilo narrativo de um fã confesso de Ernest Hemingway, entre outros autores
americanos do primeiro time, a série de Getúlio nasceu protegida pelo aval
entusiasmado do editor Luiz Schwarcz, da Companhia das Letras. Ele e mais o
apoio da RT Features, que comprou os direitos autorais da obra ainda quando era
apenas uma pálida ideia, possibilitaram a Lira Neto a concretização do projeto
da sua vida. “Preciso ficar cinco ou seis anos sem me preocupar com a conta de
luz”, pediu ele, no que foi atendido. A historiografia de Getúlio Vargas
agradece.
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