Por
Edmílson Caminha em 26/06/2012
À
comemoração do centenário de Nelson Rodrigues, Jorge Amado, Luiz Gonzaga e
Mazzaropi, juntem-se, em 2012, os 90 anos a que chegaria Otto Lara Resende.
Jornalista, contista, romancista, cronista, o festejado mineiro de São João
del-Rei foi, principalmente, uma grande figura humana, um príncipe da
Renascença, mestre em conquistar admiradores e fazer amigos. Com Fernando
Sabino, Paulo Mendes Campos e Hélio Pellegrino, tornou ainda maior e mais puro
o sentimento da fraterna cordialidade. Para Nelson Rodrigues, era obsessão –
uma das tantas do dramaturgo, que se superou ao dar a uma peça o título de Otto
Lara Resende ou Bonitinha, mas Ordinária. Segundo ele, conversador assim
tão brilhante deveria andar com um taquígrafo a tiracolo, para não perder uma
só das frases que de sua boca jorravam como água da fonte...
E
eram muitas, a pôr entre Oscar Wilde, Bernard Shaw e Millôr Fernandes o nome de
Otto: “A grande contribuição de Minas Gerais para a cultura universal é a
tocaia”; “O Brasil dribla os homens de boa-fé”; “Escrever bem é pensar bem”; “A
Europa é uma burrice aparelhada de museus”; “Toda opressão é passageira, tanto
quanto é permanente no Brasil”; “Política é a arte de meter a mão na merda”;
“Toda leitura é um reencontro”; “O psicanalista é uma comadre bem paga” (esta,
com certeza, para sacanear o amigo Hélio Pellegrino, referência da psicanálise
brasileira); “No jornal, é melhor errar depressa do que acertar devagar...”;
“De que adianta a posteridade, se lá estaremos mortos?”; “No Brasil, lei é como
vacina: umas pegam, outras não”.
Sobre
os irmãos Adolpho, Bóris e Arnaldo, para quem trabalhou na revista Manchete,
disse: “Os Bloch eram um só torvelinho: uma família solidamente unida pela
desunião”. Aos donos do poder, sabiamente aconselhava: “Dormir 24 horas em cima
de um rompante é sempre bom, sobretudo para quem, sendo autoridade, pode fazer
o mal com uma simples penada”. Quando soube que o jornalista Tarso de Castro
morrera de cirrose hepática, aos 50 anos, escreveu: “A vida jogada fora, num
gesto de desdém e rebeldia. Mas onde está a vida dos que a depositaram na
poupança?”
Otto
não economizou a sua, embora tenha vivido sempre com moderação e cuidado. Daí o
espanto com que, em 1992, recebemos a notícia de que falecera aos 70 anos,
depois de prosaica operação para reparar uma hérnia de disco. Asmático, não
tinha maiores preocupações quanto à saúde, e respondia com bom humor sobre a
doença que, até 1943, se escrevia asthma:
–
Vez por outra a crise vem, mas depois da nova ortografia melhorei bastante...
Palavra
cumprida
Conheci
Otto Lara Resende em 1981, quando foi a Fortaleza, com a mulher, Helena,
participar de um seminário de literatura. Ana Maria e eu recebemos o casal no
aeroporto e o levamos ao hotel, na Praia de Iracema. Enquanto subiam as malas,
caí na besteira de pedir-lhe que me autografasse um exemplar do Boca do
Inferno, publicado pela José Olympio, que comprara havia pouco no Rio. A
reação do escritor me surpreendeu:
–
Onde é que você encontrou este livro?!
–
Na própria editora, em balcão de ofertas logo na entrada da livraria...
–
Que coisa! Eu não sabia que ainda estivesse à venda. Sou traumatizado com esses
contos.
–
Por quê?
–
Porque a reação que desencadearam foi tamanha que jurei nunca mais publicá-los
de novo. A única edição que saiu é esta aqui, de 1957.
–
Mas as histórias são excelentes!
–
Podem até ser, mas por causa delas me acusaram das piores coisas: de tarado,
pornográfico, pedófilo... Apenas porque procurei mostrar o lado ruim que também
há na criança, o gosto pelo sadismo, pela crueldade, a fascinação que têm pelo
sexo... Esse livro só me trouxe aborrecimentos. Sabe o que eu faço com os
exemplares que me dão para autografar?
–
Digo que estou apressado, pergunto se posso levar pra devolver depois e
simplesmente dou fim ao volume. Só vou sossegar quando destruir o último...
Revelou
a trama na maior tranquilidade, com o meu livrinho na mão... “Pronto, esse já
era”, pensei, quando me ocorreu uma ideia que poderia evitar a consumação do
crime:
–
Otto, como nós vamos sair pra almoçar, me dá o livro que eu deixo ali na
recepção. Na volta você pega...
Momentos
depois, Ana Maria foi ao recepcionista e desempenhou direitinho o seu papel:
–
Por favor, o escritor Otto Lara Resende pede o livro que está aí no escaninho
do apartamento dele...
Mais
do que depressa, correu até ao nosso carro e pôs o Boca do Inferno no
porta-malas. À noite, mal nos viu, Otto foi dizendo:
–
Aconteceu uma coisa muito estranha: alguém pegou o livro de vocês na portaria!
O rapaz diz que foi uma moça alta, morena, assim como a Ana Maria...
Ao
longo do jantar, de vez em quando voltava ao assunto, como se não estivéssemos
acreditando na história:
–
Como é que pode, Edmílson, um livro desaparecer assim?! Certamente alguém viu
quando você o entregou, foi lá e passou a mão! Mas eu prometo que, chegando ao
Rio, mandarei outro exemplar pra vocês.
Mal
sabia que o nosso já estava em casa, de volta à estante... Dias depois, chega-nos
pelo correio um volume em pagamento da promessa, com a dedicatória que
pedíramos: “Para Ana Maria e Edmílson Caminha, cumprindo a palavra, este
documento arqueológico. Mais o abraço do Otto Lara Resende”.
Assim
aconteceu a história que bem se poderia chamar “De como dois exemplares do Boca
do Inferno sobreviveram à perseguição do autor”...
[Edmílson Caminha é jornalista e escritor]
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