RUY CASTRO
COLUNISTA DA FOLHA
Quando os CDs surgiram e tomaram a indústria
fonográfica, em fins dos anos 80, todos os patetas do mundo nos desfizemos de
nossas coleções de LPs. Era como se, de repente, aquele formato de disco que
por 40 anos nos servira tão bem --e no qual nos habituáramos a ouvir a
perfeição-- se tornasse portador de lepra.
Tínhamos de nos livrar deles e trocá-los pelos
reluzentes CDs, embora, até então, só uma parcela mínima de títulos já
estivesse no novo formato. E, de quebra, precisávamos aposentar também os
toca-discos --subitamente arcaicos, mesmo que fossem um Thorens, um Colaro ou
um MK II da Technics.
No Natal de 1992, quando fui visitar Ivan Lessa
em Londres pela primeira vez, surpreendi-me quando ele tirou um LP de Billy
Eckstine de uma estante vergada por milhares de LPs. "Mas você ainda tem
esses discos?", perguntei. Ele me encarou como se eu lhe tivesse
perguntado por que ainda não cortara um braço. Em resposta, tartamudeou algo
parecido com "E por que eu me desfaria deles?".
Foto
feita durante encontro dos amigos Ruy Castro (à esq.) e Ivan Lessa no Rio
Ivan estava certo. Conservou sua monumental
coleção, iniciada em 1948 (ano de surgimento do LP), e, a partir de 1990,
apenas enriqueceu-a com CDs que não tinham um antepassado em vinil. Nunca
abandonou suas obras-primas de Eckstine, Dick Haymes, Tony Martin, Herb
Jeffries, Al Hibbler, Billy Daniels, George Byron --cantores de graves
profundos, seus favoritos-- e de outros que descobriu nos anos 50, quando
ninguém ainda ouvira falar deles no Rio: Bobby Short, Mabel Mercer, Blossom
Dearie, Hugh Shannon, Joe Mooney, Bobby Troup.
Sem prejuízo, claro, dos incontornáveis e
eternos, como Sinatra, Crosby, Astaire, Tormé, Nat Cole, Billie, Sarah Vaughan,
Peggy Lee, Doris Day e centenas de outros. Ivan podia falar de igual para igual
com qualquer conhecedor de música americana --mas engana-se quem o imagina um
desenraizado musical.
IMITAÇÕES
Sambas, marchinhas de Carnaval, valsas,
sambas-canções --na verdade, toda a pré-bossa nova: era espantosa a quantidade
de letras e melodias brasileiras que Ivan trazia na cabeça, e que exibia à
menor solicitação. E, de tanto saber cantá-las, dominou também as vozes dos
cantores. Sua imitação de Silvio Caldas era hilariante, assim como fazia à
perfeição o cantor brasileiro que ele mais admirava --Lucio Alves.
E, certa vez, em Londres, sua imitação de Billy
Eckstine assustou o próprio Mr. B., quando Ivan o entrevistou para a BBC. A
diferença de timbres entre Silvio, Lucio e Eckstine não diz algo sobre o
alcance da voz de Ivan?
Ter conservado sua coleção de discos era apenas
normal para ele. Não se joga fora o passado --era o que sempre parecia dizer.
Guardava tudo na memória: o rosto das
ex-namoradas, a embalagem de dezenas de marcas de cigarros, a formação da
orquestra Sauter-Finegan em 1950, o time de aspirantes do Botafogo em 1954, a
sequência de lojas comerciais --uma a uma, no sentido Leme-Posto 6-- da avenida
Nossa Senhora de Copacabana, os nomes dos pianistas, porteiros e
leões-de-chácara de todas as boates do Rio e as intimidades de figurões da
literatura, do jornalismo e do teatro com quem convivera desde criança, amigos
de sua mãe, a cronista Elsie Lessa (alguns desses amigos eram Vinicius de
Moraes, Clarice Lispector, Tônia Carrero).
E era uma longa memória, porque ele começou tudo
muito cedo --aos 15 anos, em 1950, já tinha trabalhado como ator em dois filmes
e fumava quatro maços de cigarros por dia.
Quando o conheci, no Rio, em 1972, Ivan acabara
de voltar de Londres, para onde fora, pela primeira vez, em 1968 (e, por isso,
não participou da aventura da revista "Diners", dirigida por seu
amigo Paulo Francis, nem esteve, ao contrário do que se publicou, entre os
fundadores do "Pasquim").
Ao olhar em torno, em seu apartamento de
cobertura no Leme, e vendo as paredes abarrotadas de LPs, eu me perguntava como
seria transportar aquilo tudo pelo oceano, do Rio a Londres, ida e volta, sem
quebrar um disco.
Tempos depois, Ivan se mudou para outro
apartamento, na rua Bolívar, sempre na praia, e lá se foram de novo as caixas e
caixas de discos, desta vez nos caminhões da Gato Preto. Mas os amigos sabiam
que, se um ataque marciano derretesse toda a coleção de Ivan, ele a teria
inteira na cabeça --cada orquestração, cada letra, cada interpretação.
Em Londres, para onde voltou (para sempre) em
1978, Ivan foi morar em South Kensington, um bairro de predinhos baixos,
cobertos de hera, e românticos pátios e jardins internos. James M. Barrie
situou ali a casa de Wendy e seus irmãos em "Peter Pan" (1911), e
Walt Disney explorou-o lindamente em seu desenho de 1953, botando todo mundo
para voar sobre aqueles tetos.
Uma vizinhança bem de acordo com Ivan, que, a
meu ver, sofria do complexo de Peter Pan, o garoto que não quis crescer.
Contrariando sua natureza ("Nunca tive jeito para ser jovem", ele
disse), Ivan queria ter estacionado em algum lugar do passado --e, com perdão
pela psicologia de galinheiro, quem sabe sua impaciência e neurastenia, que às
vezes se abatiam sobre afetos e desafetos, não fossem pela constatação daquela
impossibilidade.
Nos últimos 20 anos, fomos a Londres várias
vezes, e muito por causa de Ivan --numa dessas, em janeiro de 1993, com direito
a uma esticada em Paris, Ivan e Elisabeth, eu e Heloisa. Atravessando uma rua
perto do Louvre, ele me disse que, quando morresse, morreriam de vez com ele
vários personagens importantes de Ipanema, já falecidos, dos quais ele ainda
era dos poucos a se lembrar.
Quais? "Liliane Lacerda de Menezes,
Zequinha Estelita, Josef Guerreiro, Rony 'Porrada', Carlos Thiré."
Perguntei sobre eles. Ele me deu a ficha de cada um, e ali tive a ideia de, um
dia, fazer um livro que seria uma "enciclopédia" de Ipanema e se
chamaria "Ela é Carioca" (o livro saiu em 1999).
A lembrança de Ivan atravessando ruas e falando
depressa, driblando carros, atropelando ideias, como se não pudesse perder
tempo para se expressar, contrasta dolorosamente com as de apenas dez anos depois,
em Londres, quando subíamos juntos a seu apartamento, no quarto andar do
predinho sem elevador, e ele chegava lá em cima sem conseguir respirar.
Ou das últimas vezes em que foi nos encontrar na
rua, para irmos às suas queridas lojas de discos --Dress Circle, Ray's Jazz
Shop, Mole Jazz, Templar Records. Ivan acreditava que era preciso ir todos os
dias às lojas, porque, quem sabe, um único exemplar de determinado disco só
apareceria certo dia e, justo neste, outro colecionador iria lá e o compraria.
Vindo de qualquer pessoa, essa obsessão seria neurótica. Em Ivan, fazia
sentido.
Ivan detestava quando brasileiros o informavam
da morte de um de seus velhos amigos no Rio. Ele não queria saber. Mas, nos
últimos anos, a morte o cercou --ele perdeu Paulo Francis, José Lewgoy, sua mãe
Elsie, o radialista Jader de Oliveira (seu colega de BBC e melhor amigo em
Londres), Millôr Fernandes, muitos mais. O mundo estava ficando cada vez mais
despovoado e, pelo que ele dizia nos e-mails, só faltava ele.
Finalmente partiu, em junho último, aos 77 anos,
como se a carroça-fantasma estivesse atrasada para vir pegá-lo.
Na Flip
O colunista da Folha Ruy Castro fala sobre jornalismo literário na sexta (6), às 11h, na Casa Folha, em mesa mediada por André Barcinski.
O colunista da Folha Ruy Castro fala sobre jornalismo literário na sexta (6), às 11h, na Casa Folha, em mesa mediada por André Barcinski.
Fonte
Folha de SP
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