Autor:
Por Gilberto Cruvinel
Astor Piazzolla e seu pianista analisam uma
partitura em 1986 durante o ensaio no Teatro Guaíra, Curitiba. Foto do
estudante Ariel Palacios.
Há exatamente 20 anos [4 de julho de 1992], Astor
Piazzolla morria em um hospital portenho, vítima de uma agonia de dois anos
provocada por trombose. Ele foi o grande compositor argentino do século XX, e –
apesar das duas décadas transcorridas desde sua morte – continua sendo neste
século XXI a referência para os jovens compositores.
Piazzolla abriu as portas
para um estilo novo de fazer tango, misturando a síncope do jazz, percussão, a
guitarra elétrica, o cello e orquestras sinfônicas. A forma de tocar o
bandoneón, em pé, apoiado em apenas um joelho, era considerado “herético” pelos
tradicionalistas, que diziam que o bandoneón tinha que ser tocado sentado.
Os tradicionalistas também
implicavam com sua barba. Depois, implicaram com seu cavanhaque. E até
implicaram com sua “mosca” (o mini-cavanhaque).
Piazzolla cruzou a linguagem
popular e culta. Não é à toa que na Amazon.com este
compositor argentino está simultaneamente nas categorias de tango, jazz, música
clássica e world music. Piazzolla revolucionou o tango a partir dos anos 60.
Seu estilo predominou durante três décadas, até sua morte. Entre suas composições
mais famosas estão o “Adiós Nonino” e “Balada para un
loco”.Mas a minha preferida é “Decarísimo”. A influência
do estilo piazzoliano era tão grande, que, a nova fase do tango argentino só
foi possível mais de uma década após sua morte, com o tango techno.
Astor aponta. Ao lado, o guarda. E ao lado
deste, Gardel. O filme: El día en que me quieras, da Paramount
GARDEL E EL PIBE ASTOR – Carlos Gardel estava protagonizando mais um
filme em Nova York pela Paramount em 1934 quando um garoto de 13 anos, Astor,
foi conhecê-lo. O garoto levava um presente do pai para Gardel, que consistia
em uma figura de um homem tocando violão (o instrumento que Gardel tocava)
esculpida em madeira e um convite para comer raviólis em sua casa.
Astor morava em Nova York
praticamente desde que tinha quatro anos de idade (ali residiria até os 16) e
tocava o bandoneón, instrumento que seu pai havia lhe dado de presente quando
fez nove anos. Os Piazzollas moravam em um modesto apartamento na rua St Marks
Place, atualmente o bairro boêmio do Village.
Gardel ficou fascinado pelo
garoto que falava perfeito inglês e espanhol e o convidou a fazer uma ponta no
filme “El Dia em que me quieras” no papel de um “canillita”
(jornaleiro). Astor tornou-se seu guia e tradutor em Nova York, especialmente
pelo bairro italiano, onde Gardel – bom garfo – gostava de conhecer as
cantinas. Ocasionalmente Gardel comia raviólis de ricota na casa dos Piazzolla.
No entanto, Gardel dizia a Astor
que tinha que dar um touch mais argentino em seu jeito de tocar o instrumento,
já que o jovem Piazzolla havia tido aulas de piano com o húngaro Bela Wilda, um
discípulo de George Gershswin e tocava com os amigos judeus novai-orquinos nas
festas do bairro.
Um dia Piazzolla foi ao
apartamento de Gardel para mostrar como tocava o bandoneón. “Senta aí
tranqüilo, bebe o leite e toca algo no bandoneón”.
Astor tocou umas valsinhas,
umas rancheras, e finalmente um tango.
“Pibe, vos tocas el bandoneón como
um gallego!” (“Guri, você toca o bandoneón como um galego”, sinédoque usada na
Argentina para indicar um espanhol), disse brincando Gardel.
Astor Piazzolla aparece como um “canillita” de
uma rua portenha (embora filmado em um estúdio em Manhattan) neste breve
trecho:
clique aqui para
ver o vídeo
Meses depois, Gardel
convidou Astor para participar de sua troupe, que ia fazer uma tournée pela
América Central e Colômbia.
O pai de Astor, Vicente (chamado
de “Nonino”) achou que era muito novo, que seu filho não podia deixar a escola,
e disse que desta vez não viajaria.
Gardel partiu. Quase no final da
tournée, em Medellín, o cantor – e todos que estavam junto com ele – morreram
em um acidente de avião.
Astor Piazzolla ficou com os
pais mais uns anos em Nova York e depois voltaram para a Argentina.
Vicente Piazzolla, sua esposa Assunta, mãe de
Astor. E o jovem Astor.
“Adiós Nonino”, tango que Piazzolla dedicou ao pai, quando este
faleceu. A peça também foi interpretada no casamento da argentina Máxima
Zorreguieta com o príncipe herdeiro da Holanda, Wilhelm. Não é preciso dizer
que o público recorreu aos lenços em grande quantidade…aqui:
clique aqui para ver o vídeo
Em 1978 Piazzolla escreveu esta carta
imaginária para Gardel:
“ …Jamás olvidaré la noche que ofreciste un
asado al terminar la filmación de El día que me quieras. Fue un honor de los
argentinos y uruguayos que vivían en Nueva York. Recuerdo que Alberto
Castellano debía tocar el piano y yo el bandoneón, por supuesto para
acompañarte a vos cantando. Tuve la loca suerte de que el piano era tan malo
que tuve que tocar yo solo y vos cantaste los temas del filme. ¡Qué noche,
Charlie! Allí fue mi bautismo con el tango. Primer tango de mi vida y
¡acompañando a Gardel! Jamás lo olvidaré. Al poco tiempo te fuiste con Lepera y
tus guitarristas a Hollywood. ¿Te acordás que me mandaste dos telegramas para
que me uniera a ustedes con mi bandoneón? Era la primavera del 35 y yo cumplía
14 años. Los viejos no me dieron permiso y el sindicato tampoco. Charlie, ¡me
salvé! En vez de tocar el bandoneón estaría tocando el arpa”
A mestre e o futuro mestre: Nadia Boulanger durante
uma aula a Astor Piazzolla nos anos 50 em Paris.
BOULANGER, NADIA - A pessoa crucial para que Piazzolla virasse
Piazzolla foi a pianista Nadia Boulanger, que dava aula para o músico em Paris
nos anos 50, época em que ele queria ser um compositor clássico.
Um dia, cansada das
tentativas eruditas de seu aluno, perguntou se havia composto algo de sua
terra.
“Um tango”, disse ele. E
tocou o tango “Triunfal”. Boulanger pegou as duas mãos de Piazzolla e disse,
olhando fixo em seus olhos: “é isto o que você tem que fazer”.
Alguns tangólogos
afirmam que ele foi uma espécie de George Gershwin argentino.
Outro pessoa crucial na vida
de Piazzolla foi o poeta uruguaio Horacio Ferrer. Juntos, fizeram tangos como
“Balada para um louco”, cuja letra relata como a lua vai rolando pela avenida
Callao e um louco, que caminha com meio melão na cabeça, convida uma garota a
voar em sua imaginação super-esporte com andorinhas no motor.
Desta forma, o tango foi
mais além do lamento e da nostalgia e de chorar a partida da mulher para entrar
no surrealismo.
Aliás, na apresentação de Balada
para um louco, enquanto Piazzolla tocava no palco, havia um homem na platéia
que gritava “que filho da mãe, que filho da mãe!!”. Piazzolla esta irritado com
a pessoa e evitava olhar para o público. Quando terminou, foi para o camarim.
Minutos depois, entrou o dono da voz, que mais uma vez, gritava: “que filho da
mãe! Que filho da mãe pode fazer uma música fantástica dessas!”. Era Vinícius
de Moraes.
Vinícius e Astor, durante uma animada reunião na
casa de amigos em Buenos Aires em 1971.
PIAZZOLLA E OS ALFAJORES CURITIBANOS - Em 1986 eu tinha 20 anos e era estudante de
jornalismo na Universidade Estadual de Londrina. Meus pais moravam em Curitiba,
e, durante as férias de verão, coincidiu que Piazzolla apresentava-se no Teatro
Guairá. Levei uma caixa de alfajores feitos por minha mãe e um disco para ele
autografar. Cheguei no hotel onde ele se hospedava, na frente da Praça Santos
Andrade, mas o porteiro me avisou: “ele saiu para dar uma caminhada”. Dez
minutos depois ele entrou e eu me apresentei. Quando lhe dei a caixa de
alfajores, ele arregalou os olhos:“alfajores! Mas como você conseguiu
alfajores aqui no Brasil?”. Respondi: “meus pais fazem”. E
ele:“teus pais fazem?? Em Curitiba??”.
Na seqüência, apontou o
disco que tinha na outra mão e me disse: “esse disco é meu?”. Eu o
mostrei. “Você vai querer um autógrafo, não é?”. Respondi: “claro!”.
Ele autografou meu disco, comeu um dos alfajores e me perguntou o que ia fazer
depois. “Nada, ia voltar para casa…”. E ele: “você não
poderia ser meu tradutor?…, tenho que dar uma entrevista para a revista
Veja e não entendo nada do que o repórter diz”.
Resultado: durante uma hora
e meia fui tradutor de Piazzolla no salão do último andar do Mabú Hotel, na
frente da praça Santos Andrade (nesse intervalo, Piazzolla havia comido outros
dois alfajores).
Aproveitei, no final,
para fazer umas perguntas. Uma delas foi que Jorge Luis Borges dizia que o
tango só foi “tango” até o Gardel “afeminar” o tango. E, como podia o Borges
ter feito letras para tangos modernos como o de Piazzolla? Ele me respondeu: “Borges
é um chato de galochas…nem ficou sabendo que as letras eram para essas
músicas”.
Depois perguntei se ele
achava que sua música era mesmo tango, já que muitos tangueiros tradicionais
diziam que a música dele era outra coisa, que poderia ser jazz, até. Piazzolla
me disse:“a música de Buenos Aires é o tango. E se hoje a música de Buenos
Aires é minha música….minha música é tango”.
Na seqüência, me convidou
para ir ao Guaira. Não para ver seu show da noite seguinte. Mas sim, para ter o
privilégio de ver o ensaio com seu grupo durante a tarde. E assim, pude ver
como o mestre preparava sua apresentação.
Meia década depois,
voltando da casa de um amigo ao qual havia emprestado o disco do Pìazzolla,
passei na frente da Livraria Ghignone, na rua XV, em Curitiba. Vi um
alvoroço. “Quem está ali?”perguntei. Um amigo apareceu e me
disse: “uau! É o Carlos Zéfiro!”. Entrei rapidamente e
consegui me aproximar do desenhista emblema do erotismo brasileiro. Pedi um
autógrafo a Zéfiro… mas percebi que não tinha um papel… nesse momento ele
perguntou: “de quem é esse disco?”.
“Piazzolla”,
disse eu.
“Ah, o cara dos tangos modernos… eu fiz uns
tangos para a orquestra Tabajara”,
disse o mestre dos quadrinhos eróticos.
Na seqüência, pegou o disco e assinou ao lado do
Piazzolla.
Assim, Don Astor e seu
Zéfiro estão unidos na capa de um disco que há anos está na casa de meus pais.
Há tantos Piazzollas preferidos! Mas, coloco
aqui algumas peças de minha antologia pessoal:
(para assistir aos vídeos,
basta clicar no título de cada um)
Uma peça pouco conhecida no Brasil, muito
especial,
“Ciudades”, com Amelita Baltar
Aqui, o genial Yo Yo Ma interpreta o
piazzolliano
“Le Grand Tango”
E novamente, um gênio interpreta outro gênio: Yo
Yo Ma toca “Libertango”
E o interessante “Violetas
Populares”, uma homenagem de Piazzolla a Violeta Parra
Com a cantora Mina, “Balada para mi
muerte”, gravado na Itália, em 1972
E uma de minhas peças favoritas do mestre: “Decarisimo”
Mural feito por Hermenegildo Sábat no metrô
portenho, homenageando Piazzolla e seu bandoneón.
Fonte – Blog do Nassif







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