ESSA MERECE SER LIDA !!!!
Da Época
O núcleo da política do mensalão
Paulo Moreira Leite
Fonte Blog do Nassif
Da Época
O núcleo da política do mensalão
Paulo Moreira Leite
A primeira notícia sobre mensalão é que a verdade de uma face só começa a
perder credibilidade.
A noção de que se trata do “maior escândalo da história” ficou mais difícil
de sustentar depois da revelação de que, ouvidas mais de 300 testemunhas, da
acusação e da defesa, não apareceu ninguém para descrever as célebres “compras
de voto”, “mesadas” ou outras formas de comércio político que Roberto Jefferson
descreveu em junho de 2005.
O mesmo Jefferson, na verdade, deixou de sustentar essa versão
em depoimentos posteriores, menos barulhentos e mais consistentes, que
prestou à Polícia e a Justiça nos anos seguintes. Num deles, o deputado do PTB
refere-se ao mensalão como ” criação mental.“ Disse, explicitamente, que “não
envolvia” troca de apoio entre o Planalto e o Congresso e se destinava a
financiar a campanha municipal de 2004.
A verdade é que depois do início do julgamento alguns casos se revelaram
particularmente humilhantes para a acusação. Estou falando do ex-ministro,
ex-deputado e líder sindical bancário Luiz Gushiken. A acusação pede
absovição de Gushiken por falta de provas.
Mas durante sete anos Gushiken frequentou os jornais e tele jornais como um
dos suspeitos. Sua foto de cavanhaque e olhos puxados estava em toda parte, as
acusações também. Em 2005, seu depoimento a CPI foi interrompido por
comentários maliciosos de parlamentares da oposição, que dificultavam a conclusão
de qualquer raciocínio. Parte do plenário espumava de felicidade.
Já se sabia que a acusação tinha decidido indiciar Gushiken em 2007 embora
admitisse que só tinha indícios muito fracos para isso. Mas ela foi em frente,
com o argumento de que, se não apurasse nada de novo, o acusado seria
inocentado. Mas se era assim, por que não fazer o contrário e só indiciar em
caso de indícios concretos?
Revelou-se, ontem, no Supremo, um detalhe especialmente cruel. Embora
tivesse acesso a documentos oficiais que poderiam ser úteis a Gushiken, a
acusação recusou-se a fornecê-los a seus advogados em tempo hábil.
Com isso, o réu foi prejudicado no direito de apresentar uma boa
defesa. Feio, né?
O fato é que o julgamento tem permitido a apresentação serena de mais de uma
versão, interrompendo um ambiente de linchamento que acompanhou o caso desde o
início.
E é para voltar ao linchamento que começam a circular novas versões e
opiniões sobre o caso, sobre a Justiça brasileira, sobre a impunidade nacional
e assim por diante.
O raciocínio é simples: não importa o que for provado nem o que não for
provado. Caso os 38 réus não sejam condenados de forma exemplar, quem sabe
saindo algemados do tribunal, o país estará desmoralizado, nossa Justiça terá
demonstrado, mais uma vez, que só atua a favor da impunidade, que todos
queremos pizza e assim por diante.
Parafraseando Napoleão no Egito, tenta-se vender uma empulhação. Como se os
512 anos de nossa história contemplassem os 190 milhões de brasileiros a partir
das estátuas de mármore da sede do Supremo em Brasília.
Vamos deixar claro. Ninguém quer a impunidade. Todo mundo sabe que o abuso
do poder econômico é um dos principais fatores de atraso de nosso regime
democrático. Leva a corrupção e desvia os poderes públicos de seus deveres com
a maioria da população.
Não é difícil reparar, porém, numa grande hipocrisia. As mesmas forças
que sempre se beneficiaram do poder econômico, da privatização da política e do
aluguel dos governos são as primeiras a combater toda tentativa de reforma e de
controle, com o argumento de que ameaçam as liberdades exclusivas de quem tem
muito patrimônio para gastar em defesa de seus interesses.
Denunciam o mensalão hoje mas fazem o possível para que seja possível criar
sistemas semelhantes amanhã. Não por acaso, há dois mensalões com um duplo
tratamento. O dos mineiros, que é tucano, já foi desmembrado e ninguém sabe
quando será julgado. Já o do PT, que é mais novo, e deveria ceder passagem aos
mais velhos, é o que se sabe.
Este ajuda a demonstrar a tese tão cara à defesa de que a dificuldade
principal não se encontra no mensalão mas nos interesses políticos que os
acusados defendem e representam. Interesses diferentes tem tratamento
diferente, concorda?
O principal argumento para o linchamento é provocar uma parcela da elite
brasileira em seu ponto fraco – o complexo de inferioridade em relação a países
desenvolvidos. O truque é falar que sem uma pena severa nem condenações
“exemplares” (exemplo de que mesmo?) vamos confirmar nossa vocação de meia-republica,
um regime de bananas, com uma semi-desigualdade entre os cidadãos, onde a
população não sabe a diferença entre público e privado.
Coisa de antropólogo colonial em visita a terras de Santa Cruz. Por este
raciocínio, num país tropical como o nosso, não se deve perder tempo falando em
“prova”, “justiça,” ”fatos”, “testemunhas”. Muito menos em “direitos humanos,”
essa coisa que “só serve para bandidos”, não é mesmo. Somos atrasados demais
para ter atingido esse ponto. Sofremos de um mal maior, de origem.
O que existe, em nossa pequena aldeia brasileira, é uma
“cultura” de país pobre, subdesenvolvido, sem instrução. É ela que a turma do
linchamento acredita que precisa ser combatida e vencida. Por isso o julgamento
do mensalão não é um “julgamento” nem os réus são apenas “réus.”
São arquétipos. São “símbolos” e não dispensam verdades comprovadas
para serem demonstrados. Mas se é assim, seria melhor chamar o Carl Young em
vez deo Ayres Britto, não?
No julgamento de símbolos, basta a linguagem, o verbo, a cultura, os poetas,
ou em tempos atuais, a mídia – é com ela que se constroem e se desfazem
símbolos e mitos ao longo da história e mesmo nos dias de hoje, não é
mesmo?
Dane-se se as provas não correspondem ao que se espera. Para que se
preocupar com testemunhas que não repetem o texto mais conveniente ?
O que importa é dar uma lição aos selvagens, aos incultos, aos
despreparados.
Como se houvessem civilizados. E aqui é preciso refletir um pouco sobre essa
visão do Brasil. É muito complexo para um país só.
Qualquer antropólogo que já passou um fim de semana nos Estados Unidos
sabe que ali se encontra um dos países mais desiguais do planeta, onde os ricos
não pagam impostos, os pobres não têm direito a saúde e as garantias formais da
maioria dos assalariados são exemplo do Estado mínimo. A Justiça é uma
mercadoria caríssima e as boas universidades estão reservadas para os gênios de
qualquer origem e os milionários que podem pagar mensalidades imensas e ainda
contribuem com uma minúscula fatia de suas fortunas para garantir um sistema em
que o topo garante ingresso para seus filhos e netos – com aplauso de
deslumbrados tropicais pelo sistema.
Quem se acha “europeu” poderia abrir as páginas de A Força da Tradição, onde
o historiador Arno Meyer descreve a colonização da burguesia revolucionária –
da liberdade e da igualdade – pela aristocracia que moderou ímpetos mais
generosos e democráticos, chamados fraternos, dos novos tempos.
Fico pensando se os pensadores americanos acordam de manhã falando em sua
meia-república depois de pensar na força Tea Party. E os europeus, incapazes de
olhar para o horror e a miséria de sua crise contemporânea? Também acham que
tem um problema em sua “cultura”?
Tudo isso para dizer que o problema não é cultura, não é passado, mas é a
luta do presente.
E aí não é possível deixar de notar uma grande coincidência. Vamos esquecer
os banqueiros e publicitários dos “núcleos” operacional e financeiro da
denúncia. Vamos para o principal, o “núcleo político.”
Há quatro décadas, José Dirceu foi preso sem julgamento e, mais tarde,
iniciou uma longa jornada no exílio e na clandestinidade. Não lhe permitiam
circular pelo país nem defender suas ideias em liberdade. O mesmo regime que o
perseguia suprimiu eleições, transformou a justiça num simulacro, cassou
ministros do Supremo, instalou a censura a imprensa e convocou um
admirador de Adolf Hitler, como Filinto Muller, para ser um de seus dirigentes
políticos.
Civilizado, não? Meia-república? Ou o país deveria ser transformado numa
ditadura porque lideres estudantis, como Dirceu, defendiam um regime como o
comunismo cubano?
José Genoíno foi preso e torturado. Queria fazer uma guerrilha da escola
maoísta – popular e prolongada. Imagine a farsa do tribunal militar que o
condenou – com aqueles oficiais que cobriam o rosto, na foto inesquecível do
julgamento da subversiva Dilma Rousseff, mas não deixavam de cumprir o figurino
do regime, ilustrado por denuncias fantasiosas, de tom histérico.
Gushiken, a quem não forneceram provas na hora necessária, era do tempo em
que a polícia vigiava sindicatos, perseguia dirigentes – achava civilizado dar
porrada, desde que não ficassem marcas de choques elétricos.
Esta turma merece mesmo ser chamada de “núcleo político” do caso. Está no
centro das coisas de seu tempo. É o centro do átomo.
Ninguém se importa com banqueiros do Rural, vamos combinar. Nem com
publicitários. Se forem inocentados, terão direito a um chororô de fingida
indignação e estamos conversados.
A questão está nos “políticos”.
Sabe por que? Porque dessa vez “os políticos” já não podem ser silenciados
na porrada.
Quatro décadas depois, cidadãos como Genoíno, Dirceu, Gushiken, e seus
descendentes políticos, não são conduzidos a tribunais militares. Podem
apresentar sua versão, defender seus direitos. Resta saber se serão ouvidos e
considerados. Ou se há provas e argumentos para condená-los, sem perseguição
política.
Vídeo por vídeo, não há nada contra os réus que se compare a tentativa de
suborno que serviu de prova da Operação Satiagraha – anulada pela Justiça.
Também não há relação de contribuições a políticos tão clara como a Castelo de
Areia, com dezenas de milhões desviados, nome após nome – anulada pela
Justiça. Para voltar a um passado um pouco mais distante. Nunca se viu um
escândalo tão grande como o impeachment de Collor, com troca de favores e obras
públicas registradas em computador – prova anulada pela Justiça.
Desta vez, os réus têm uma chance. É isso que irrita a turma do
linchamento. Imagine quantas provas de inocência não sumiram no passado.
Quantos depoimentos não foram redigidos e alinhavados pela pancada e pela
tortura.
Hoje, os mesmos réus e seus descendentes políticos têm direito a ser
ouvidos. Representam. Seu governo tem votos. O partido é o único que população
reconhece.
Alguns acusados do núcleo contam com advogados que não cobram menos de R$
100 000 só pela primeira consulta – sem qualquer compromisso posterior. Pois é.
A justiça brasileira continua escandalosamente cara, exclusiva, desigual. É
feita para brancos e muito ricos. Mas os bons advogados deixaram de ser
monopólio do pessoal de sempre. Tem gente nova no clube. O país não mudou
muito. Só um pouquinho.
É isso que a turma do linchamento não suporta.
Fonte Blog do Nassif
Nenhum comentário:
Postar um comentário