Por Paulo Morteira Leite
Meu ponto de vista é que o mensalão não foi apenas caixa 2 para campanhas
eleitorais nem apenas um esquema de desvio de recursos públicos. Foi uma
combinação de ambos, como sempre acontece em sistemas eleitorais que
permitem ao poder econômico privatizar o poder político com contribuições
eleitorais privadas.
Um julgamento justo será aquele capaz de distinguir uma coisa da outra, uma
acusação da outra, um réu do outro.
Quem combate o financiamento público de campanha não quer garantir a
liberdade de expressão financeira dos eleitores, como, acredite, alguns
pensadores do Estado mínimo argumentam por aí e nem sempre ficam
ruborizados.
Quer, sim, garantir a colonização do Estado pelo poder econômico, impedindo
que um governo seja produto da equação 1 homem = 1 voto.
É aqui o centro da questão.
Tesoureiros políticos arrecadam para seus candidatos, empresários fazem
contribuições clandestinas e executivos que tem posições de mando em empresas
do Estado ajudam no desvio. Operadores organizam a arrecadação eleitoral e
contam com portas abertas para tocar negócios privados. Fica tudo em família –
quando são pessoas com o mesmo sobrenome.
Foi assim no mensalão tucano, também, com o mesmo Marcos Valério, as mesmas
agências de publicidade e o mesmo Visanet. Um publicitário paulista
garante pelos filhos que em 2003 participava de reuniões com Marcos
Valério para fazer acertos com tucanos e petistas. Era tudo igual, no mesmo
endereço, duas fases do mesmo espetáculo.
Só não houve igualdade na hora de investigar e julgar. Por decisão do
mesmo tribunal, acusados pelos mesmos crimes, os mesmos personagens receberam
tratamentos diferentes quando vestiam a camisa tucana e quando vestiam a camisa
petista. É tão absurdo que deveriam dizer, em voz baixa: “Sou ou não sou?” Ou:
“Que rei sou eu?”
Mesmo o mensalão do DEM, que, sob certos aspectos, envolveu momentos
de muito mau gosto, foi desmembrado.
Diante da hipocrisia absoluta da legislação eleitoral, sua contrapartida
necessária é o discurso moralista, indispensável para dar uma satisfação ao
cidadão comum. Os escândalos geram um sentimento de revolta e inconformismo,
estimulando o coro de “pega ladrão!”, estimulado para “dar uma satisfação
à sociedade” ou para “dar um basta na impunidade!” Bonito e inócuo. Perverso,
também.
Até porque é feito sempre de forma seletiva, controlada, por quem tem o
poder de escolher os inimigos, uma força que está muito acima de onze juízes.
Estes são, acima de tudo, pressionados a andar na linha…
Em 1964, o mais duradouro golpe contra a democracia brasileira em sua
história, teve como um dos motes ilusórios a eliminação da corrupção. O outro
era eliminar a subversão, como nós sabemos. Isso demonstra não só que a corrupção
é antiga mas que a manipulação da denúncia e do escândalo também é. Também
lembra que está sempre associada a uma motivação política.
Entre aqueles que se tornaram campeões da moralidade de 64, um número
considerável de parlamentares recebeu, um ano e meio antes do golpe,
cinco milhões de dólares da CIA para tentar emparedar João Goulart no
Congresso. Depois do 31 de março essa turma é que deu posse a Ranieri Mazzilli,
alegando que Jango abandonara a presidência embora ele nunca tenha pedido a
renúncia.
Seis anos depois do golpe, o deputado Rubens Paiva, que liderou a CPI que
apurou a distribuição de verbas da CIA e foi cassado logo nos primeiros dias,
foi sequestrado e executado por militares que diziam combater a subversão e a
corrupção. Não informam sequer o que aconteceu com seu corpo. Está
desaparecido e ninguém sabe quem deu a ordem nem quem executou. Segredo
dos que combatiam a subversão e a corrupção, você entende.
O alvo era outro. A democracia, a sempre insuportável equação de 1 homem = 1
voto.
Eu acho curioso que a oposição e grande parte da imprensa – nem sempre elas
se distinguem, vamos combinar, e recentemente uma executiva dos jornais
disse que eram de fato a mesma coisa – tenham assumido a perspectiva de
associar, quatro décadas depois, a corrupção com aquelas forças e aquelas
ideias que, em 64, se chamavam de subversão.
A coisa pretende ser refinada, embora pratique-se uma antropologia de
segunda mão, uma grosseria impar. Não faltam intelectuais para associar
Estado forte a maior corrupção, proteção social a paternalismo e distribuição
de renda à troca de favores. Ou seja: a simples ideia de bem-estar social,
conforme essa visão, já é um meio caminho da corrupção.
Bolsa-Família, claro, é compra de votos. Como o mensalão, ainda que nenhuma
das 300 testemunhas ouvidas no inquérito tenha confirmado isso e o próprio
calendário das votações desminta uma conexão entre uma coisa e outra. Roberto
Jefferson disse, na Policia Federal, que o mensalão era uma “criação mental”
mas a denúncia reafirma que a distribuição de recursos era compra de
consciência, era corrupção – você já viu aonde essa turma pretende chegar.
A corrupção dos subversivos é intolerável enquanto a dos amigos de sempre
vai para debaixo do tapete.
Desse ponto de vista, eu acho mesmo que o julgamento tem um sentido
histórico. Não por ser inédito, mas por ser repetitivo, por representar uma
nova tentativa de ajuste de contas. Não é uma farsa, como lembrou Bob Fernandes
num comentário que você deve procurar na internet.
A farsa é o contexto.
Veja quantas iniciativas já ocorreram. O desmembramento, que só foi
oferecido aos tucanos. O fatiamento, que nunca havia ocorrido num processo
penal e que apanhou o revisor de surpresa.
Agora que a mudança de regras garantiu que Cezar Peluso possa votar pelo
menos em algumas fases do processo (“é melhor do que nada”, diz o procurador
geral) já se coloca uma outra questão: o que acontece se o plenário, reduzido a
dez, votar em empate? Valerá a regra histórica, que eu aprendi com uns oito
anos de idade, pela qual em dúvida os réus se beneficiam? Ou o presidente Ayres
Britto irá votar duas vezes?
E, se, mesmo assim, houver uma minoria de quatro votos, o que acontece?
Vai-se aceitar a ideia de que é possível tentar um recurso?
Ali, no arquivo das possibilidades eventuais, surgiu uma conversa do
ministro Toffoli, às 2 e meia da manhã, numa festa em Brasília. Já tem sido
usada para dar liçãozinha de moral no ministro. No vale-tudo, servirá
para criar constrangimento.
Enquanto isso, os visitantes que chegam a Praça dos Três Poderes demonstram
mais interesse em tirar foto turística para o facebook do que em seguir os
debates, como revelou reportagem de O Globo. Calma. O julgamento não vai ser
tão rápido como se gostaria. Com a cobertura diária no horário nobre, manchetes
frequentes, é possível mudar isso…
Minha mãe ria muito de uma vizinha, que dias antes do 31 de março de 64 foi
às ruas de São Paulo protestar a favor de Deus, da Família, contra a corrupção
e a subversão. Quando essa vizinha descobriu, era um pouco tarde demais e a
filha dela já tinha virado base de apoio da guerrilha do PC do B. O diplomata e
historiador Muniz Bandeira conta que a CIA trouxe até padre americano
para ajudar na organização daqueles protestos.
A marcha de 64 foi um sucesso, escreveu o embaixador norte-americano
Lincoln Gordon, num despacho enviado a seus chefes em Washington, já envolvidos
no apoio e nos preparativos do golpe. Mas era uma pena, reparou Gordon, que havia
poucos trabalhadores e homens do povo.
Paulo
Moreira Leite
Fonte – Revista Epoca
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