Dalmo Dallari: “Eu não sei se devido à pressão
muito forte da imprensa ou por qualquer outro fator, o fato é que o próprio STF
tem cometido equívocos, agido de maneira inadequada de forma a comprometer a
sua própria autoridade”. Foto: Enemat
por Conceição Lemes
Nessa quinta-feira 27, aconteceu a 29ª audiência
da Ação Penal 470, o chamado mensalão. A cada semana de julgamento – foi-se a
nona –, aumentam os questionamentos sobre os aspectos jurídicos, éticos e
midiáticos do processo (leia AQUI e AQUI).
“Eu não sei se devido à pressão muito forte da
imprensa ou por qualquer outro fator, o fato é que o próprio Supremo Tribunal
Federal (STF) tem cometido equívocos, agido de maneira inadequada de
forma a comprometer a sua própria autoridade”, alerta o jurista Dalmo de Abreu
Dallari. “Muitas vezes ministros antecipam a veículos o que vão dizer no
plenário.”
“Na semana passada, o jornal o Estado de S.
Paulo noticiou com todas as letras o que Joaquim Barbosa iria dizer no seu
voto naquele dia (leia AQUI e AQUI). E o ministro disse exatamente aquilo
que o jornal havia antecipado. Isso foi um erro grave do ministro”, afirma
Dallari. “O ministro não deve – jamais! — entregar o seu voto a alguém, seja
quem for, antes da sessão do tribunal, quando vai enunciá-lo em público.
É absolutamente inadmissível comunicar o voto antes, compromete a boa
imagem do Judiciário, a imagem de independência e imparcialidade.”
“Muitas vezes a imprensa, querendo o
sensacionalismo e se antecipar aos outros órgãos de comunicação, busca penetrar
na intimidade do juiz”, observa Dallari. “Isso é contrário ao interesse
público. Não tem nada a ver com a liberdade de imprensa. Isso eu chamaria de
libertinagem de imprensa.”
Dalmo de Abreu Dallari é um dos mais renomados e
respeitados juristas brasileiros. Professor emérito da Faculdade de Direito da
USP, ele está perplexo com o comportamento da mídia assim como dos juízes do
STF no julgamento da Ação Penal 470.
Viomundo – Em artigo no Observatório da Imprensa que nós reproduzimos,
o senhor aborda impropriedades cometidas pela mídia na cobertura de assuntos
jurídicos. Também diz: no chamado mensalão, “a imprensa que, vem exigindo
a condenação, não o julgamento imparcial e bem fundamentado do processo,
aplaudiu a extensão inconstitucional das competências do Supremo Tribunal e fez
referências muito agressivas ao ministro Lewandowski – que, na realidade, era,
no caso, o verdadeiro guardião da Constituição”. Isso é culpa só da imprensa?
Dalmo Dallari — Nos últimos anos, se passou a dar muita publicidade
ao Judiciário. A sua cobertura, porém, está sendo feita sem o preparo mínimo,
como se fosse um comício.
Acontece que o Judiciário, além de aspectos
técnicos muito peculiares, tem posição constitucional e responsabilidade
diferenciadas. Em última instância, decide sobre direitos fundamentais da
pessoa humana. Então, é necessário tomar muito cuidado no tratamento das suas
atividades. Exige de quem vai produzir a matéria um preparo técnico mínimo.
Exige também o cuidado de não transformar em teatro aquilo que é decisão sobre
direitos fundamentais da pessoa humana.
Eu acho que, no caso do chamado mensalão, está
se dando tratamento absolutamente inadequado. Eu não sei se devido à pressão
muito forte da imprensa ou por qualquer outro fator, o fato é que o próprio
Supremo Tribunal tem cometido equívocos, agido de maneira inadequada de forma a
comprometer a sua própria autoridade.
Viomundo – Mas o próprio Supremo está se
deixando pautar pela mídia, concorda?
Dalmo Dallari –
Sem dúvida alguma. Eu entendo que de parte a parte está havendo erro. Os dois
[STF e mídia] deveriam tomar consciência de suas responsabilidades, da natureza
dos atos que estão sendo noticiados, comentados, para que não se dê este ar de
teatro que estamos assistindo.
Às vezes uma divergência entre ministro parece
clássico de futebol, um Fla-Flu, um Palmeiras-Corinthians. Entretanto, quem
acompanha a área jurídica, sabe que é normal divergência entre os julgadores.
É por isso que a própria Constituição brasileira
– e não só brasileira, isso é universal –, as constituições preveem
tribunais coletivos, porque se pressupõe que é preciso um encontro de opiniões
para que, com equilíbrio, independência, colocando os interesses da Justiça
acima de tudo, se chegue a uma conclusão majoritária.
Nem é necessário que as conclusões sejam todas
unânimes. Existe, sim, a previsão da conclusão majoritária, o que implica o
reconhecimento de que haverá divergências.
Viomundo – A mídia às vezes antecipa como o
ministro vai votar no dia seguinte. O que representa isso para um processo?
Dalmo Dallari —
Isso é muito sério. Leva à conclusão de que houve uma interferência na formação
da opinião do ministro. Ele não agiu com absoluta independência, com a
discrição, a reserva que se pressupõe de um ministro de um tribunal superior.
Na semana passada, o jornal O Estado de S.
Paulo noticiou com todas as letras o que o ministro Joaquim Barbosa
iria dizer no seu voto naquele dia (leia AQUI e AQUI).
Como é que esse jornalista sabia antes o que o
ministro iria dizer? Esse jornalista participou da elaboração do voto, da
intimidade do ministro, quem sabe até inferiu nele? Será que sugeriu use
esta palavra e não aquela? Ou, pior, sugeriu algum encaminhamento?
Como o ministro Joaquim Barbosa disse exatamente
o que o jornal havia antecipado (leia AQUI e AQUI), ficou comprovado que ele permitiu a
presença do jornalista no momento em que ele estava elaborando o seu voto.
Isso é absolutamente inadmissível, compromete a
boa imagem do Judiciário, a imagem de independência e imparcialidade. Portanto,
houve, sim, um erro do órgão de imprensa, mas houve, sem dúvida, um erro grave
do ministro que se submeteu a esse tipo de participação.
Viomundo – O ministro Joaquim Barbosa pode
apenas ter entregue ou comentado o seu voto ao jornalista antes…
Dalmo Dallari –
Mas foi antes da sessão. Isso está errado! O ministro vai enunciar o seu voto
em público numa sessão do tribunal. Ele não deve – jamais! — entregar o
seu voto a alguém, seja quem for, antes da sessão. Até porque durante a
sessão ele vai ouvir colegas, vão surgir situações novas, pode ser que ele
aperfeiçoe o seu voto, introduza alguma coisa. Efetivamente, o voto só deve ser
enunciado na hora do julgamento. Por isso, reitero: foi um erro grave do
ministro Joaquim Barbosa.
Viomundo — Professor, que outros equívocos nesse
julgamento comprometem o processo?
Dalmo Dallari –
Pessoas que não têm “foro privilegiado” – a maioria, diga-se de passagem —
estão sendo julgadas originariamente pelo Supremo Tribunal. Esse é um erro
fundamental e mais do que óbvio. É uma afronta à Constituição, pois essas
pessoas não têm “foro privilegiado” e devem ser julgadas inicialmente por
juízes de instâncias inferiores. A Constituição estabelece expressamente
quais são os ocupantes de cargos que serão julgados originariamente pelo
Supremo Tribunal.
Viomundo – Em que casos o acusado deve julgado
originariamente pelo Supremo Tribunal Federal e não por alguma instância inferior?
Dalmo Dallari –
Estão nomeados no artigo 102 da Constituição. No inciso I, dispõe-se, na letra
“b”, que o Supremo Tribunal tem competência para processar e julgar,
originariamente, nas infrações penais comuns, “o Presidente da República, o
Vice-Presidente, os membros do Congresso Nacional, seus próprios Ministros [do
STF] e o Procurador Geral da República”. Em seguida, na letra “c”, foi
estabelecida a competência originária para processar e julgar “nas infrações
penais comuns e nos crimes de responsabilidade, os Ministros de Estado e os
Comandantes da Marinha, do Exército e da Aeronáutica, os membros dos Tribunais
Superiores, os do Tribunal de Contas da União e os chefes de missão diplomática
de caráter permanente”.
Portanto, o Supremo está julgando originariamente
pessoas que não se enquadram nessas hipóteses. Isso é grave, porque essas
pessoas não têm aquilo que se chama “foro privilegiado”. A expressão
“privilegiado” é discutível, porque, na verdade, é um privilégio que tem
restrições.
A decisão nos casos de “foro privilegiado”
começa e termina no Supremo Tribunal. Ao passo que os empresários, o pessoal do
Banco Rural, o próprio Marcos Valério, que são pessoas que não ocupavam função
pública, deveriam, em primeiro lugar, ser processados e julgados pelo juiz de
primeira instância. Se condenados, teriam direito a recurso a um tribunal
regional. E, se condenados ainda, teriam recurso a um Tribunal Superior.
O Supremo, no entanto, acatou a denúncia e está julgando essas pessoas
que não terão direito de recurso.
Viomundo – O que representa essa decisão do STF
de julgar todos os acusados?
Dalmo Dallari —
O direito de ampla defesa delas foi prejudicado. Isso vai contra a Constituição
brasileira, que afirma que elas têm esse direito. Vai também contra
compromissos internacionais que o Brasil assumiu de garantir esse amplo
direito de defesa.
Depois de terminado o julgamento, isso vai abrir
a possibilidade de uma nova etapa. É fácil prever. Os advogados dos condenados
sem “foro privilegiado” têm dois caminhos a seguir. Um, será uma denúncia a uma
Corte internacional, no caso a Corte Interamericana de Direitos Humanos da
Organização dos Estados Americanos (OEA). O outro: eles poderão entrar também
com uma ação declaratória perante o próprio Supremo Tribunal para que declare
nulas as decisões, porque os réus não tinham “foro privilegiado”. E, aí, vai
criar uma situação extremamente difícil para o Supremo Tribunal, que terá de
julgar os seus próprios atos.
Viomundo – Na fase inicial do julgamento, o
ministro Lewandowski levantou a questão do “foro privilegiado”…
Dalmo Dallari –
De fato, essa questão foi suscitada, com muita precisão e de forma
absolutamente correta, pelo ministro Ricardo Lewandowski. Ele fez uma
advertência que tinha pleno cabimento do ponto de vista jurídico.
Entretanto, por motivos que não ficaram claros,
a maioria dos ministros foi favorável à continuação do julgamento de todos os
acusados pelo Supremo Tribunal. E prevaleceu a posição do ministro-relator
Joaquim Barbosa que dizia que o tribunal deveria fazer o julgamento de todos
sem levar em conta que muitos não têm “foro privilegiado”. O ministro Marco
Aurélio Mello foi o único que acompanhou o voto do revisor.
Viomundo – No seu entender, o que levou o
Supremo a agir assim?
Dalmo Dallari — Eu acho que, em grande parte, a pressão da dita
opinião pública feita através da imprensa. Eu acho que isso pesou muito. E, a
par disso, pode ter havido também um peso das próprias convicções políticas dos
ministros, porque eles claramente estão julgando contra o Direito. Eles não
estão julgando juridicamente, mas politicamente.
Eu me lembro que, no começo, antes mesmo do
julgamento, alguns órgãos da imprensa já diziam seria o “julgamento do
século”. Não havia nenhum motivo para dizerem isso. Os julgamentos
de casos de corrupção já ocorreram muitas e muitas vezes e não mudaram o
comportamento da sociedade brasileira nem criaram jurisprudência nova.
O julgamento do chamado mensalão também não vai
criar jurisprudência nova. Não há nenhum caso novo que houvesse uma divergência
jurisprudencial e que somente agora vai ser unificado. Não existe essa
hipótese. Então, é um julgamento como outros que já ocorreram, com a diferença
que há muitos réus e vários deles ocuparam posições políticas importantes. Mas,
do ponto de vista jurídico, nada justifica dizer que é um julgamento
excepcional, menos ainda o julgamento do século.
Viomundo – O senhor apontaria algum outro
equívoco?
Dalmo Dallari –
Acho que os básicos são estes. Primeiramente, o STF assumir uma competência que
a Constituição não lhe dá. Depois, essa excessiva proximidade dos ministros com
a imprensa, antecipando decisões que serão tomadas numa sessão posterior. Acho
que é um comportamento muito ao contrário do que se espera, se pode e se deve
exigir da mais alta Corte do país. Isso também está errado do ponto de vista
jurídico.
Viomundo – O ministro Lewandowski tem sido até
insultado pela grande mídia por causa do julgamento do mensalão. O que acha
disso?
Dalmo Dallari –
A mesma imprensa que faz referências agressivas ao ministro Lewandowski é a que
vem exigindo a condenação e não um julgamento imparcial e bem fundamentado de
todos os casos. É a mesma imprensa que aplaudiu o STF, quando ele, no início do
julgamento do chamado mensalão, passou por cima das nossas leis, extrapolando a
sua competência. Nesse caso, o ministro Lewandowski tem sido o verdadeiro
guardião da Constituição brasileira.
Viomundo – Em 2002, o senhor publicou um texto
dizendo que a indicação de Gilmar Mendes para o STF representava a
degradação do Judiciário. Em 2010, quando ministro defendeu a
necessidade de dois documentos para o cidadão votar, o senhor, em entrevista,
ao Viomundo, disse que a “Decisão de Gilmar Mendes prova que ele não tinha condições
de ser ministro do STF.” Considerando que sobre o ministro
Gilmar Mendes pesam várias acusações, não seria um contrassenso ele julgar a
Ação Penal 470?
Dalmo Dallari –
Claro que é uma contradição. Ele não tem condições morais para fazer esse
julgamento.
Gilmar Mendes foi acusado de corrupção quando
era Advogado Geral da União. Ele é dono de um cursinho em Brasília e, com
dinheiro público, matriculou os seus auxiliares da Advocacia Geral da União no
seu próprio cursinho. Ele estava nos dois lados do balcão: contratante e
contratado.
A par disso, na questão indígena e em várias
outras, ele revelou sempre uma parcialidade mais do que óbvia. Ele não é um
ministro imparcial, equilibrado, que se orienta pela Justiça e pelo Direito.
Ele é um homem arbitrário, que não tem respeito pelo Direito nem pela
Constituição. Nem pela ética.
Viomundo – Teria mais algum alerta a fazer?
Dalmo Dallari —
Eu gostaria que a própria imprensa advertisse os juízes dos tribunais quanto ao
risco do excesso de exposição. Muitas vezes a imprensa, querendo o
sensacionalismo e se antecipar aos outros órgãos de comunicação, busca penetrar
na intimidade do juiz. Isso é contrário ao interesse público. Não tem nada a
ver com a liberdade de imprensa. Isso eu chamaria de libertinagem de imprensa.
Fonte
– Blog Viomundo.com.br
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