por Conceição Lemes
Desde o início do julgamento do “mensalão”, a sociedade assiste ao ministro
Joaquim Barbosa, do Supremo Tribunal Federal (STF), cumprir dois papéis. O de
policial, pois participou de todo o processo de investigação. E o de julgador,
já que vota também sobre o destino dos 38 acusados no processo.
Isso me chamou a atenção. Como leiga no assunto, me fiz várias perguntas:
não haveria aí um conflito de interesse? É justo? Qual o procedimento adotado
nos países desenvolvidos? A dupla-função não poderia contaminar o processo?
“Pelo artigo 230 do Regimento do Supremo, não há problema. Um mesmo ministro
pode presidir a fase de investigação e julgar”, explica o advogado criminal
Luiz Flávio Gomes. “Porém, por força da Corte Interamericana de Direitos
Humanos, quem preside a investigação, não pode participar depois do processo.”
“O regimento interno do Supremo é ultrapassado, autoritário, despótico”,
ressalta. “Esse dispositivo de um mesmo ministro cumprir dois papéis é absurdo.
Isso é da Idade Média. No tempo da Inquisição era assim: o juiz
investigava e julgava.”
Durante 15 anos, Luiz Flávio Gomes foi juiz criminal em São Paulo. Depois,
aposentou-se e advogou por dois anos. É fundador da maior rede de ensino à
distância na área jurídica do país. Nesse ramo, é concorrente do ministro
Gilmar Mendes, do STF. É considerado um estudioso do Direito. Por isso, segue a
nossa entrevista na íntegra.
Viomundo – O ministro Joaquim Barbosa presidiu a investigação
do “mensalão” e está julgando o caso. Não há problema nisso?
Luiz Flávio Gomes — Pelo artigo 230 do Regimento Interno do
Supremo, é legítimo, legal, não há nenhum problema. Porém, por força da Corte
Interamericana de Direitos Humanos, que fica em San José da Costa Rica, não
pode.
A Jurisprudência da Corte Interamericana de Direitos Humanos diz: quem
preside a investigação não pode participar depois do processo, porque aí
cumpre dois papéis. Um é o de investigador. E outro de juiz. E isso não
pode. O juiz tem de ser imparcial; juiz não pode ter vínculos com as
provas antes do julgamento.
Portanto, o regimento interno do nosso Supremo é ultrapassado,
autoritário e absurdo, pois permite que o mesmo ministro cumpra dois papéis,
como está acontecendo agora.
Viomundo – Pela Corte Interamericana, o ministro Barbosa não poderia
acumular as duas funções?
Luiz Flávio Gomes – Não se trata especificamente do
ministro Joaquim Barbosa. Qualquer que fosse o ministro do Supremo designado
para a fase de investigação, ele não deveria julgar. Se o fizer, estará
seguindo um dispositivo arcaico, ultrapassado e que não condiz com a
jurisprudência da Corte Interamericana de Direitos Humanos.
Viomundo – O STF usa a mesma conduta para outros casos?
Luiz Flávio Gomes – Sim. É da tradição do Supremo, porque
segue rigorosamente o artigo 230 do Regimento Interno. Porém, isso é do
tempo do Brasil ditatorial. É uma regra que não condiz hoje com a democracia,
com os valores de um juiz imparcial.
Viomundo – Essa norma vem da ditadura militar?
Luiz Flávio Gomes – É de bem antes. Antigamente, um caso ou
outro caso ia para o Supremo. E num país racista, classista, como o nosso,
gente de cima não ia a julgamento. Então nunca ninguém chamou atenção para
isso.
Mas, de uns tempos para cá, com mais réus respondendo processo no Supremo,
já se começa a perceber que a legislação do próprio Supremo é muito
ultrapassada, está incorreta, não é justa. Eu não queria ser julgado por um
juiz que investigou na fase anterior. Eu quero ser julgado por um juiz
imparcial.
Viomundo – O juiz que investiga e julga ficaria contaminado?
Luiz Flávio Gomes – Perfeito! É essa a expressão correta. A
doutrina italiana usa, inclusive, essa expressão. O juiz fica psicologicamente
envolvido com o que ele faz antes e aí está contaminado para atuar depois no
processo.
No caso do STF, o ministro que investiga é quem determina as provas, quebras
de sigilo, oitiva dessa ou daquela pessoa e assim por diante. Ele preside
tudo sozinho desde o começo. Essa é a norma. Os demais ministros só conhecem o
resultado de tudo isso, o que está no papel. Esse é o regimento do STF. Porém,
ele conflita com o regulamento da Corte Interamericana de Direitos
Humanos.
Viomundo – Como funciona em outros países?
Luiz Flávio Gomes – Tem um caso famoso – Las Palmeras
contra a Colômbia – que aconteceu algo igual ao que está ocorrendo aqui
agora. Um juiz presidiu a investigação e depois participou do julgamento.
Esse caso foi para a Corte Interamericana de Direitos Humanos, que disse: não
pode. O magistrado que cumpre o duplo papel de “parte”
(investigador) e de juiz viola a garantia do juiz imparcial. Em função disso, a
Corte anulou totalmente o julgamento realizado na Colômbia.
Respondendo então diretamente à sua pergunta: no mundo inteiro civilizado, o
duplo papel não pode, pois conflita com o juiz imparcial.
Não é achismo meu, Luiz Flávio. É a jurisprudência da Corte Interamericana
de Direitos Humanos que diz que o juiz não pode cumprir o papel de policial,
investigador, e depois o de juiz.
Viomundo — Qual a diferença entre a investigação do procurador-geral
da República e a do ministro do STF?
Luiz Flávio Gomes — O procurador também faz investigação.
Ele tem o papel efetivo de acusar as pessoas. Ele investiga antes de tudo. Para
ele acusar, ele tem de ter provas. O papel dele é esse mesmo.
O problema é que quem vai julgar depois tem de ser alguém que não tenha tido
nenhum contato com este momento anterior, por já estar psicologicamente
envolvido com tudo.
Viomundo – Que conseqüência esse duplo papel pode ter?
Luiz Flávio Gomes – Certamente o caso será levado à
Comissão Interamericana de Direitos Humanos, que depois remeterá para a Corte
Interamericana de Direitos Humanos.
É grande a possibilidade de esse processo ser anulado, como no caso da
Colômbia. Já existe jurisprudência precedente naquela corte. Não é
novidade para a Corte Interamericana. Além disso, deve mandar o Brasil fazer um
novo julgamento, com juiz imparcial.
Viomundo — Como é a nossa relação com a Corte Interamericana
de Direitos Humanos?
Luiz Flávio Gomes — Cada país adere ou não adere. E o
Brasil aderiu em 1998. Portanto, quem adere, tem que cumprir o que a Corte
determina. Por exemplo, a Maria da Penha, aquela senhora que apanhou do marido
e quase foi morta. Ela para conquistar o que pleiteava teve de recorrer à
Corte Interamericana de Direitos Humanos, porque a Justiça brasileira não
estava funcionando para o caso dela.
E o que aconteceu com a Maria da Penha? O Brasil acabou cumprindo direitinho
tudo o que a Corte Interamericana determinou.
E por que o Brasil cumpriu? Porque aderiu. Existe uma expressão latina que
nós usamos no campo do Direito que diz o seguinte: você não é obrigado a
assinar nenhum documento, mas se assinou, tem de seguir.
Por isso existe uma grande possibilidade de esse caso ser remetido à Corte
Interamericana.
Viomundo — Teria algum outro motivo para isso acontecer?
Luiz Flávio Gomes – Tem, sim. Dos 38 réus da Ação Penal
470, apenas três deles deveriam ser julgados pelo STF; os outros 35, não, pois
não têm direito a recurso.
Viomundo – Por favor, explique melhor.
Luiz Flávio Gomes — Os que têm de ser julgados pelo STF são
os três deputados: João Paulo Cunha (PT-SP), Valdemar da Costa Neto (PR-SP) e
Pedro Henri (PP-SP). Até por causa do foro privilegiado, já que são
parlamentares, têm que ser julgados pelo Supremo e não há nenhum órgão acima.
Por isso são julgados uma só vez.
Já os outros 35 tinham de ir para a Justiça de primeiro grau, serem julgados
e, aí, prosseguir o processo. É o que nós chamamos de duplo grau de recurso. Só
que eles não tiveram direito a isso. O STF lhes negou.
E o que é pior. Neste final de semana, um jornal trouxe a informação de que
o esse processo tem outros 80 réus. Só que esses 80 réus terão direito a duplo
grau de recurso. E os 35 não terão. Esse tratamento desigual é absurdo.
Os 35 não têm por causa de três. Só que 80 do mesmo caso vão ter duplo grau
de recurso porque o processo foi para outras instâncias. Os 35 estão sendo
tratados de maneira desigual.
Dois pesos e duas medidas para uma mesmíssima situação. Portanto, esse
é outro problema que com certeza vai acabar na Corte Interamericana de Direitos
Humanos.
Viomundo — Isso tudo vai ser decidido a curto prazo?
Luiz Flávio Gomes – O Supremo cumpre logo a sua função.
Pelo que vimos, vai condenar praticamente todo mundo. Agora, ser condenado não
significa que aqueles que terão penas de prisão irão automaticamente para
cadeia. Haverá embargos. Aí, depois, transitará em julgado.
Viomundo – Indo para a Corte Interamericana de Direitos Humanos o
que acontecerá?
Luiz Flávio Gomes – Há duas coisas. Lá , o processo é
moroso e não suspende o que foi resolovido aqui até a decisão da Corte
Interamericana de Direitos Humanos. Se o Supremo mandar alguém para a cadeia, a
pessoa irá para a cadeia normalmente.
Mas, no futuro, a Corte deverá anular o julgamento. Nessa altura, o pessoal
já terá cumprido pena. De qualquer maneira, essas pessoas terão direito a
indenização. E certamente a Corte vai mandar o STF refazer o seu regimento
interno.
Viomundo – É esse o encaminhamento que imagina que vai ser dado?
Luiz Flávio Gomes – Sim. A Corte Interamericana vai mandar
o Brasil refazer o seu regimento interno, pois é um dispositivo despótico. Isso
é da Idade Média. Nos processos da Inquisição era assim: o mesmo juiz investigava
e julgava. E isso inconcebível numa democracia, em pleno XXI.
Nenhum comentário:
Postar um comentário