"Cadeia para os mensaleiros!," gritam com
impaciência tantos comentaristas políticos.
Sugerem que o breve ritual jurídico que antecede os
capítulos finais da ação penal 470 pode se transformar num exercício de
impunidade, quando não passa de uma estreita brecha para se tentar garantir – é
apenas uma possibilidade, vamos combinar - o sagrado direito de defesa.
Ao contrário do sujeito que sequestrou uma família ou
mesmo um homicida com vários cadáveres no currículo, os condenados do mensalão
não terão direito a uma segunda sentença por outro tribunal.
Como se sabe desde o ano passado, as garantias dos
condenados foram reduzidas de modo seletivo pelo próprio STF, que negou aos
acusados do PT um direito que assegurou aos similares do PSDB – o desmembramento
do processo. É uma decisão tão absurda que dificilmente será repetida.
No mensalão do DEM, ainda em fase preparatória, tem-se
como certo que se fará o desmembramento. Os condenados do PT, assim, serão os
únicos a ter uma única chance de defesa, o que torna sua situação especialmente
grave.
Chegamos, então, ao momento da tragédia anunciada
quando o plenário recusou o pedido de desmembramento.
Em busca de uma nova chance para serem ouvidos, cinco
réus lutam para ter um segundo relator.
Seria uma solicitação legítima e razoável, em qualquer
situação, a partir do princípio elementar de que a mente que condena não pode
ser a mesma que avalia a condenação. O tribunal também não cultiva a tradição
de manter um relator que acumula a presidência da casa.
A solicitação torna-se ainda mais pertinente quando se
recorda a atuação de Joaquim Barbosa durante a ação penal, claramente alinhada
com a acusação, conforme assinalaram tantos observadores.
Pelo que se apura no ambiente jurídico de Brasília, a
troca de relator será uma empreitada dificílima e quase impossível. Não está
garantido, na verdade, que os condenados terão direito a um debate produtivo,
onde poderão apresentar seus pontos e argumentos com clareza.
Joaquim Barbosa já pediu a opinião do procurador geral
da República, aquele que queria mandar prender os condenados antes da
publicação do acórdão da sentença, o que é pouco estimulante.
Pelo mesmo motivo, é fácil adivinhar que, se tudo der
errado em Brasília, mais tarde os condenados poderão enfrentar problemas
semelhantes para serem ouvidos pela Corte Interamericana de Direitos Humanos,
na Costa Rica. Em várias oportunidades, ministros do STF já condenaram essa
iniciativa. Eles estão atuando para isso.
Lembro que, por motivos óbvios, uma denúncia à Corte
Interamericana era motivo de preocupação de governos arbitrários e ditaduras
escancaradas. Claro que, naquele período, estava em jogo a decisão de tribunais
militares, onde os direitos do Direito não podiam expressar-se. Ninguém
esperava decisões com base em métodos democráticos. Era a violência, a
covardia, o abuso.
O que se queria naquele tempo era o silêncio, a
submissão. A pena do então preso político na Justiça Militar José Genoíno foi
agravada porque ele denunciou que havia sofrido torturas.
Em vez agradecer tamanha coragem numa hora tão
difícil, abrindo imediatamente uma investigação a respeito, o que seria próprio
de juízes dignos de seu trabalho, puniram a vítima.
Sob um regime democrático, a Justiça não pretende
mudar a história nem redesenhar a paisagem do mundo – missão que cabe ao povo
de cada país, seja pela sua mobilização, seja pelo voto popular, pela aprovação
de leis no Congresso.
À justiça cabe aplicar a lei.
O professor Celso Bandeira de Mello, responsável pela
indicação de Carlos Ayres Britto para o Supremo, costuma explicar que a justiça
é, essencialmente, conservadora. Ela deve confirmar o que está pactuado entre
os homens.
E é por isso que ela dá segurança ao cidadãos.
Para cumprir sua missão, ela permite recursos, revisões
e novos recursos.
Aprendemos que - em última análise - é preferível ter
um culpado solto do que um inocente atrás das grades. Se você acha que isso é
receita de pizza, como sugere a turma do linchamento, precisa ler Voltaire.
Num mundo sem santos, a ideia não se resume a lembrar
que toda pessoa é inocente até que se prove o contrário.
É dar todas as chances aos juízes – estes homens do
Estado - para evitar uma injustiça, uma derrota vergonhosa da civilização.
No mensalão, não estamos falando de penas leves nem
punições passageiras, mas de gente condenada a 40 anos, como Marcos Valério, a
25 anos, como o publicitário Cristiano Paz, de José Dirceu, condenado a dez
anos.
Não consegui ler os embargos de todos eles.
Mas li, por exemplo, o recurso de Henrique Pizzolato,
que durante anos frequentou as páginas da imprensa como um dos vilões
prioritários.
Pizzolato é o diretor do Banco do Brasil que foi
acusado de ter desviado R$ 73 milhões para as agências de Marcos Valério.
Acabou condenado a 12 anos e 7 meses, além de R$ 1,3 milhão de multa.
Está tudo 100% claro e confirmado em sua condenação?
A leitura do embargo declaratório mostra que não. Nem
de longe.
A principal observação do embargo de Pizzolato é
lembrar que diversos documentos – que constam dos autos – não foram levados em
consideração pelo tribunal. Eram provas que poderiam ajudar em sua defesa. Não
precisavam ser aceitas. Mas poderiam ter sido consideradas, avaliadas e
respondidas – ainda que fosse para rejeitá-las de forma integral.
Um julgamento não pode ser um ambiente de reações
optativas, ao sabor de preferências pessoais e gostos do momento – como um
debate sobre escolas literárias.
Comecei a contar o número de vezes em que, conforme o
recurso, o tribunal desconsiderou testemunhas e documentos, mas perdi a conta.
Mais do que o registro numérico, vale a definição. O silêncio diante de
contradições e episódios não explicados é um dado constante.
Como observou Raimundo Pereira na revista Retrato do
Brasil, são páginas e páginas que desmentem aquilo que se disse e se falou.
Em vários momentos, os advogados de Pizzolato citam
documentos oficiais e testemunhas críveis que podem dar sustentação a seus
argumentos. Apresentam dados impressionantes e conclusivos, revelações
chocantes e de impacto. O que aconteceu com isso?
Nada. É o discurso único, unilateral e unidimensional.
(Lembrando os anos 60, poderíamos recordar uma obra Herbert Marcuse, crítico da
alienação na sociedade contemporânea, correto?)
Claro que ninguém é obrigado a considerar que um
determinado documento deve definir o rumo de um julgamento ou mesmo dar a base,
isoladamente, para uma nova convicção. Você pode ler um documento – ou ouvir
uma testemunha - e achar que é uma grande besteira ou mesmo uma falsificação
marota. Isso acontece todo dia num tribunal.
A questão é que, num julgamento, espera-se que os dois
lados sejam pesados e avaliados. Mesmo quem despreza uma prova trazida pela
defesa, ou pela acusação, deve dar explicações - com lealdade - em seu voto.
Não pode fingir que não ouviu. Se o documento é pura
malandragem, isso precisa ser explicado e argumentado.
Se a testemunha é uma fraude, deve ser desmascarada.
Até porque pode haver um novo crime aí, concorda?
Pizzolato é acusado de desviar dinheiro publico, do
Banco do Brasil, em troca de “vantagem indevida”. Seria o condenado ideal:
abriu o cofre e pegou sua parte. Muitos petistas acreditaram nisso, na época.
O embargo mostra que a partir das provas disponíveis
após sete anos de investigação não há como sustentar uma coisa nem outra.
Mostra que não há meio para sustentar que ocorreu desvio de dinheiro público. O
Banco do Brasil, que teria sido a parte lesada, não acha isso. A Visa também
não.
Nenhuma dessas instituições solicitou a Pizzolato a
devolução de recursos desviados – o que seria a obrigação de qualquer dirigente
que se preze, sob o risco de ser acusado de cumplicidade numa ação na Justiça.
Quanto à vantagem indevida, meus amigos, virou fumaça.
A quebra de sigilo das contas pessoais, a evolução do patrimônio e dos
investimentos de Pizzolato não apontaram para nenhuma irregularidade, nenhum
centavo fora de lugar. Chato, né?
Para quem ficou indignado com o desmembramento do
mensalão, que garantiu que os acusados do PSDB-MG fossem julgados em primeira
instância - sem falar, claro, de políticos com mandato - com direito a uma
segunda sentença em tribunal superior, o embargo de Pizzolato apresenta uma
informação espantosa. Mostra que a opção seletiva, que prejudicava petistas e
confortava homens de confiança do PSDB, começou antes.
Entre diretores e gerentes do Banco do Brasil,
acusados de envolvimento no esquema, a denúncia encontrou cinco nomes. Desse
total, quatro estão sendo investigados - em segredo - pela Justiça comum. Entre
eles, até o responsável pela prorrogação dos contratos da DNA, de Marcos
Valério, com o governo Lula, definida antes mesmo que Pizzolato fosse
empossado.
Outro dado. Em 2001, dois anos antes da posse de Lula
no Planalto, a DNA começou a receber recursos da Visanet.
Ou seja: se você acredita que havia um esquema para
favorecer Valério no Banco do Brasil, precisa admitir que ele não esperou
Pizzolato para começar a funcionar. E deve perguntar por que o ultimo a chegar
foi o único a sentar-se no banco dos réus do STF. Mistério?
Estes diretores eram remanescentes do governo FHC, e
foi naquela época que o mensalão PSDB-MG desembarcou em Brasília, ainda em sua
fase puramente tucana, procurando meios para pagar Valério pelas contas da
campanha de Eduardo Azeredo, de 1998. O embargo deixa claro que dois deles,
pelo menos, tinham uma responsabilidade funcional superior a Pizzolato.
Eram homens de confiança do PSDB que foram mantidos na
transição para Lula. Não foram importunados pelo STF, porém.
Não há explicação razoável para um tratamento tão
diferenciado, dizem os advogados de Pizzolato. A explicação jurídica é pueril:
nenhum dos outros implicados era parlamentar nem ministro. Nenhum tinha direito
ao “fórum privilegiado” do STF. Muito justo.
Mas se esta era a razão, falta explicar por que essa
regra não beneficiou Pizzolato.
Outro dado espantoso. O desmembramento do mensalão
mineiro foi uma decisão tomada em público.
O desmembramento dos acusados do Banco do Brasil –
todos os nomes foram apontados em 2005 pela CPMI dos Correios – só foi
divulgado no final de 2012, quando o julgamento se aproximava do final. Naquele
momento, uma reportagem da Folha de S. Paulo contou o que acontecia. Até então,
a investigação era mantida em segredo – desde 2006.
Os advogados de Pizzolato só tiveram acesso ao
conjunto dos documentos desse inquérito sigiloso em 19 de abril de 2013, uma
semana antes do prazo final para entrar com o pedido de embargo.
Naquele momento, Pizzolato já fora condenado a 12 anos
de prisão.
A defesa de Pizzolato consegue sustentar, com
consistência, a visão de que, pelo seu lugar no Banco do Brasil, a denúncia
padece de uma falha de princípio. Ele não poderia ser acusado como autor de um
crime – na pior das hipóteses, seria co-autor.
Mais grave.
O principal elemento para acusar Pizzolato eram notas
técnicas favoráveis à agência de Marcos Valério. Mas ele nunca assinou uma nota
sozinho. E não assinou todas as notas.
Um diretor que assinou todas elas, aliás, não foi lhe
fazer companhia no STF. Por quê? Ninguém sabe, ninguém explica.
São fatos que dão o que pensar. Seria bom, para o
país, que fossem devidamente analisados, explicados e respondidos , concorda?
Fonte – Blog do Saraiva
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