Por Ana Ferraz
A despedida de Paulo Vanzolini, notável cientista e
decantado poeta do samba, que morreu em São Paulo aos 89 anos.
No último samba, Quando Eu For, Eu Vou sem Pena (1977),
lindamente gravado por Chico Buarque na coletânea Acerto de Contas (2003),
caixa de quatro CDs que o zoólogo de veia poética e humor corrosivo considerou
o fecho de ouro de sua carreira musical, Paulo Vanzolini foi premonitório. Quando
eu for, eu vou sem pena/ Pena vai ter quem ficar, anuncia a letra.
No domingo 28, Vanzolini sucumbiu a uma pneumonia. Tinha 89 anos bem vividos e
um coração que mesmo com 30% da capacidade ainda batia entusiasmado pelo samba.
Cientista respeitado dentro e fora do País, autor de 155 artigos acadêmicos e
vencedor de prêmios importantes, como o outorgado em 2012 pela Fundação Konrado
Wessel, fez da música um hobby que rendeu clássicos como Ronda, Volta
por Cima, Praça Clóvis e outras belas e menos conhecidas canções,
como Valsa das Três da Manhã e Cravo Branco. Modesto, achava
graça do título de embaixador do samba tantas vezes a ele conferido. “Não tenho
por que ter essa vaidade”, disse em entrevista a CartaCapital em janeiro
de 2012.
Autodeclarado duro de ouvido e incapaz de escrever
ou ler partituras, Vanzolini compôs cerca de 70 músicas. “Meu professor foi o
rádio.” Deleitava-se com os sambas de Noel Rosa (“meu mestre de tudo”), Dorival
Caymmi, Cartola, Nelson Cavaquinho, Geraldo Filme, Paulo Nogueira, Dona Ivone
Lara, Adoniran Barbosa e com as vozes de Nelson Gonçalves, Orlando Silva e
Silvio Caldas. “Ouço esses compositores até hoje, são essenciais.” Com Nelson
Cavaquinho a relação ultrapassava a admiração. “Éramos muito amigos. Tomávamos
muita cerveja aqui em casa.” Com Adoniran, companheiro assíduo de cachaça e
conversa fiada, jamais houve parceria musical. “Nossa conversa era cotidiana.
Não rendeu música. Eu nunca compus com ninguém, compuseram comigo”, dizia, riso
satisfeito de quem não perde a piada.
A casa do compositor no Cambuci, estrategicamente próxima da adorada Escola de Samba
Lavapés e na região “dos melhores bares da cidade”, frequentados até
recentemente para o sagrado ritual da cervejinha, foi ponto de encontro da nata
do samba: Roberto Silva, Paulinho da Viola, Eduardo Gudin, Paulinho Nogueira,
Martinho da Vila. Reuniam-se para cantar, tocar e compartilhar causos, esporte
em que Vanzolini era versado. Inconfidências costumavam ser bem-vindas. Como a
história do ciúme de Cacilda Becker em relação a Mariinha, Tônia Carrero, por
causa de Adolfo Celi. Na época, Vanzolini namorava Cleide Yáconis, irmã de
Cacilda. Nessas reviravoltas que a vida dá, Tônia acabou por levar a melhor e
se casou com Celi. A cena em que Cacilda vai ao teatro tomar satisfações de
Tônia é antológica, mas, a pedido do entrevistado, fica como apimentada
indiscrição cometida no calor da entrevista e restrita a quem ali estava.
Filho de um professor de estatística e economia da
Escola Politécnica, o paulistano Vanzolini nasceu “com um livro na mão”.
Recitava poemas, lia de João Guimarães Rosa a Homero. A medicina foi uma escada
para o que realmente lhe interessava, a zoologia. Tornou-se o mais notável
especialista em répteis do País, embrenhou-se Amazônia adentro em busca de
exemplares, percorreu a América do Sul, vasculhou a Patagônia. Relembrou com
emoção o momento em que localizou na selva amazônica o macaco descoberto por um
aluno. “Pegamos o barco e fomos atrás. Achamos um igarapé onde uma mulher
lavava roupa. Perguntou o que estávamos vendendo. ‘Estamos nesse negócio do
mico-de-cheiro. Tem aqui?’ ‘Depende, se vocês querem o de cabeça preta é deste
lado, o de cabeça vermelha é do outro’. Quase desmaiei. O bicho foi batizado
como Saimiri vanzolini.”
Surpreendia na personalidade do cientista e poeta a capacidade de conciliar disciplina e boemia. O
pesquisador que trabalhou 47 anos no Museu de Zoologia, 31 dos quais como
diretor, era o mesmo que saía pelas madrugadas de uma São Paulo poeticamente
prateada pela garoa. O faro de caçador de bichos provou-se afiado para
talentos. Revelou artistas como Os Macambiras, Virgínia Rosa, Martinho da Vila.
Foi numa andança pelo Centro, ainda com patrulha do Exército, que observou a
cena inspiradora de Ronda. “Via as mulheres da vida entrar, olhar no bar
e ir embora. Fiquei pensando o que tinha por trás disso.”
Vanzolini não nutria por Ronda
o mesmo apreço do público que a abraçou como um dos hinos da cidade. Achava
que ninguém tinha entendido a ironia. “É uma piada. A mulher está atrás do cara
para desperdiçar um pente de revólver.” Entre suas favoritas estava Longe de
Casa Eu Choro (parceria com Eduardo Gudin), feita durante o doutorado em
Cambridge, nos EUA: (“...sinto falta de São Paulo/ De escutar na
madrugada/ Uns bordões de violões/ E uma flauta a chorar prata/ Dor de amor não
me magoa/ A saudade da garoa é que me mata”). E, bem ao seu estilo, gostava
da deliciosamente irreverente Juízo Final. Absolvido dos pecados (“no
geral bem pesados”), o poeta elevado aos céus observa satisfeito o panorama no
andar inferior: “Agora só toco harpa/ De camisola e sandália./ Espio pra ver
lá embaixo/ A quadrilha da fornalha./ Aquela ingrata hoje está/ Trabalhando de
salsicha,/ Espetadinha no garfo/ Satanás fritando a bicha./ Ô demônio,
capricha!”
Fonte - Carta Capital
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